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domingo, 6 de fevereiro de 2022

CONCERTO: João Paulo Esteves da Silva



CONCERTO: João Paulo Esteves da Silva
Auditório de Espinho
04 Fev 2022 | sex | 21:30


Quando, do piano, se desprendem as primeiras notas, chega-nos a certeza de termos embarcado numa viagem. Uma viagem pelo nosso interior e mais além, ditada pela memória, rica de cores e aromas e sabores, rica de ritmo e música e vida. E assim, do fundo de um ritmo lento, de uma sequência de acordes de uma tristeza infinda, como um lamento, sentimos a semente que se abriga na terra escura e fria, à espera do momento certo para germinar e, enfim, romper na forma de duas finas e delicadas folhas, muito pequeninas, muito dobradas sobre si. O sol saúda a novidade, beija as folhas que se multiplicam num caule que não cessa de crescer. A música faz-se de trinados. Há pássaros que cantam, há uma terra a pintar-se de verde. Um tom estival toma conta da melodia e vemos como é vistosa a flor, como é vaidosa. Como é efémera. Os acordes voltam aos graves, o ritmo torna-se mais lento. A flor murcha até que morre e desaparece.

Ler desta forma a peça que abriu o concerto de João Paulo Esteves da Silva é um privilégio que só a mim assiste. Mistérios e maravilhas da arte, elevada a um patamar superior na sequência de temas interpretados no Auditório de Espinho, “meio de transporte” feito de saber e improviso que nos toma num misto de assombro e maravilha e nos faz levitar. À peça chamou o artista “Improviso nº 1”. Formalmente não existiria no momento imediatamente antes de ser tocada, mas já por lá andaria na cabeça do artista e, quem sabe, na nossa também. Para o público foi um momento único e raro, delicado, precioso, um momento que, porventura, jamais se repetirá. O mesmo aconteceu com o “Improviso nº 2”, outra viagem musical, esta transportando-me ao interior de uma casa. O ar é lúgubre, a dor é palpável. Dor da saudade de alguém que está longe, que faz tanta falta, sobretudo agora. Uma inflexão na música e logo a alegria do reencontro, o abraço apertado, o beijo demorado.

Dois novos improvisos depois e eis que a segunda parte do concerto nos puxa para baixo, nos confronta com outros ritmos, outras cores. Há sequências de acordes que identificamos, há um agradecimento ao labor de Michel Giacometti na preservação do cancioneiro tradicional que é feito. Uma canção de embalar leva-nos por outras paragens, por novas viagens. O mesmo acontece num malhão “triste coitado”. Como vagas, os trechos conhecidos vão e vêm, mas a maré preenche-se de improviso. Sempre. É já no “encore” que vemos apaziguado tão enorme sobressalto. “Little Girl Blue”, da dupla Rodgers & Hart, foi uma pérola mais num colar distinto, o coração a apertar-se ao parecer-nos escutar a voz frágil de Chet Baker por sobre as notas do piano. Ou será Janis Joplin? Ao longo do texto resisti a falar em Jazz, embora o género tenho atravessado o concerto todo. Instalou-se com força no tema final, mostrou a sua tremenda ductilidade. E foi muito bom.

[Foto: Auditório de Espinho | facebook.com/auditoriodeespinhoacademia/]

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