Não sabendo muito bem por onde começar, começarei pelo fim. Rejubilem os poucos que, na noite da passada sexta-feira, fizeram questão de dirigir os seus passos para a Casa da Criatividade, ao encontro de Maria Mendes e de um jazz diferente, distinto. É que este foi um concerto absolutamente fabuloso. Dos meus alguns anos nestas andanças do jazz e afins, guardo momentos marcantes e nomes sonantes, o virtuosismo, o improviso e a reinvenção aflorando como pilares básicos do meu gosto por um género musical nem sempre bem compreendido e aceite. Mas contam-se pelos dedos os concertos onde essa alegria e entusiasmo pela novidade se manifestassem de forma tão viva e estimulante como este que abriu a presente edição do Novembro em Jazz. O segredo tem quatro letrinhas apenas e dá pelo nome de “fado”. Esse mesmo, o que é nosso e é do mundo, aqui explorado com saber, elegância, ritmo e um enorme bom gosto.
Apropriar-se do fado sem esquecer nunca a matriz jazzística que conforma toda a sua carreira artística, tal é o mérito de Maria Mendes. Um mérito que deve ser repartido com John Beasley, responsável pelos arranjos, e com os músicos que pisaram com a cantora o palco da Casa da Criatividade, o pianista Carlos Azevedo, o contrabaixista Jasper Somsen e o baterista Mário Costa. O resultado excede, a todos os níveis, as melhores expectativas, sobretudo porque este é um “casamento” ao qual muito poucos vaticinariam sucesso. Não é de ânimo leve que abandonamos traços rijamente inculcados na nossa identidade cultural, que deitamos para trás das costas o preconceito e nos dispomos a aceitar a mudança, com tudo o que de bom e de mau ela pode arrastar. Estou certo, porém, que Maria Mendes não se pôs tanto “a jeito” como pode parecer. Ela sabia que havia ali um caminho a explorar e fê-lo com tacto e, sobretudo, muita paixão. Terá gostado do que encontrou. Sabia que o público iria gostar também.
A história do concerto conta-se “em duas penadas”. Entre o estranhar e o entranhar foi tempo de um tema só, esse inicial “Dança do Amor”, que a todos prendeu a respiração e pôs milhões de borboletas a revoltear nas barrigas. A partir daqui, o fado e o jazz fundiram-se para tomar conta dos sentidos, o “Barco Negro” vivido com emoção, aqueles gritos às velhas da praia - “são loucas, são loucas” -, ainda a ecoar na minha cabeça. “Há Uma Música do Povo”, “Tudo Isto é Fado”, “Foi Deus” ou “Asas Fechadas”, para citar apenas os mais conhecidos, foram a prova da versatilidade do género, para tanto haja arte e engenho. E voz, devo acrescentar, também aí Maria Mendes a revelar-se uma intérprete notável, escalando os agudos com a solidez e a doçura próprias dos predestinados. A crítica não ficaria completa se não partilhasse este segredo: Quando vi o nome de Maria Mendes na programação do Novembro em Jazz pensei que fosse uma cantora brasileira. Nunca ouvira o seu nome a propósito do que quer que seja. O meu desconcerto prende-se com o facto de não me considerar um sujeito desatento ou pouco informado. Sem me deter nas causas do desconhecimento direi apenas que este concerto marca o ano de 2021 e que Maria Mendes é um nome que deve merecer mais atenção.
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