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domingo, 7 de novembro de 2021

LIVRO: "Descrição Abreviada da Eternidade"



LIVRO: “Descrição Abreviada da Eternidade”,
de Diogo Leite Castro
Edição | EGO
Ed. EGO Editora, Janeiro de 2020


“Acenei com a cabeça, para dizer que sim, e perguntei se tinha alguma coisa para beber. Ela deixou-se ficar na cama e apontou para a porta. Fui à cozinha, abri o frigorífico, e entornei pela goela uma garrafa de vinho branco que estava aberta. Andava a beber mais do que era normal, e muito mais do que o meu organismo era capaz de suportar, mas não conseguia evitar. Acabei com a garrafa, fui depois à casa de banho, e quando despejei o autoclismo tive a perceção de que a minha vizinha era uma prostituta, o que era uma chatice, pois não tinha levado carteira.”

“E se, numa livraria, encontrasse um livro supostamente escrito por si?” Colocada de chofre, na própria capa do livro, a questão abre-nos as portas de uma relação onde o ser e o parecer mantêm uma convivência nada pacífica. Cravel é o protagonista de uma história que nos mostra o quão desinteressante pode ser a realidade objectiva da vida simples, em contraste com a vida sonhada dos outros, com as suas agendas mediáticas, a sua exposição e reconhecimento públicos. Numa casa húmida e fria da Cantareira, com o Douro a espraiar-se da janela da sala, olhamos para este homem de cara redonda e cabelo aos caracóis e vamos percebendo que o embuste em que se transformou a sua vida abriga outros embustes, bem maiores e mais perniciosos do que o seu. O conflito interior adensa-se. É preciso cortar o mal pela raíz.

Sucedendo ao narcoterrorismo, à crise dos migrantes, às prisões do Estado Novo, ao preconceito de género, às questões raciais e a outras leituras “pesadas” dos últimos tempos, “Descrição Abreviada da Eternidade” é uma lufada de ar fresco na minha vida de leitor. Doseando sabiamente as pontas de uma história feita de engenho e leveza, Diogo Leite Castro oferece-nos uma ficção que mergulha na verdade dos livros e da literatura, temperando-a com muito humor, ironia e alguma malícia. Uma história que transforma a dúvida existencial de um indivíduo num conjunto de questões fundamentais sobre a relação que escritores e leitores vêm estabelecendo nestes tempos mais próximos. Sempre com um enorme sorriso, como quem não quer a coisa, o autor fala-nos de um processo marcado, entre outros factores, pela importância do estar mais do que do ser, pela dissimulação e pelo disfarce, pelo mercado que, com mão férrea, dita a sua lei e põe em causa o próprio futuro da literatura.

Percebo que Diogo Leite Castro é, acima de tudo, um leitor. Um leitor que escreve para leitores, que sabe como lhes tocar no ponto certo, que revela um profundo conhecimento do mundo dos livros e não se coíbe de expor os seus podres e brincar com isso. Ao fazê-lo, reflecte sobre a arte e ofício da escrita, sobre a objectificação dos livros e o apagamento da literatura, partilhando dúvidas e certezas com os seus leitores e implicando-os na discussão, interrogando, inquietando. Há, por outro lado, o prazer que o autor retira da sua escrita. Não raras vezes, dei por mim a rir à gargalhada e a ver, “do lado de lá”, Diogo Leite Castro a acabar de escrever aquelas palavras e a rir-se à gargalhada também. Uma gargalhada salutar sobre um mundo onde Bukowski permanece vivo e sem emenda, Mário Claúdio se recusa a ir a Penafiel porque prefere passar o fim de semana em Venade, é muito fácil fazermo-nos passar pelo Valter Hugo Mãe e se assiste a uma conferência de Cláudio Magris numa barulhenta cervejaria do Campo Alegre. Tudo mentira? Olhe que não, olhe que não...

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