LIVRO: “O Barulho das Coisas ao Cair”,
de Juan Gabriel Vásquez
Texto original | “El ruido de las cosas al caer” (2011)
Tradução | Vasco Gato
Ed. Alfaguara, Outubro de 2020
“É tudo, tudo o que tenho. Não me peça que lhe dê pormenores, Yammara, falar dos seus próprios erros não é fácil para ninguém. E eu tenho os meus, como toda gente. Fiz merda, claro. Fiz merda da grande. Você é muito jovem, Yammara, tão jovem que talvez permaneça virgem num desses erros. Não me refiro a pôr os cornos à sua namoradinha, não é isso, não me refiro a ter comido a namoradinha do seu melhor amigo, isso são coisas de meninos. Refiro-me aos erros de verdade, Yammara, que é uma coisa que você ainda não conhece. E ainda bem. Aproveite, Yammara, aproveite enquanto puder: somos felizes até fazermos certa merda, e depois não há forma de recuperar o que éramos antes. Enfim, é o que estou para confirmar nestes dias. A Elena vem aí e eu vou tentar recuperar o que havia antes.”
Bogotá, 2011. A foto a meia página numa revista mostra um grupo de caçadores em volta de um animal abatido, uma grande mole escura e rugosa que jaz agora por terra. De forma trágica, chegavam ao fim os dias de liberdade de um hipopótamo fugido dois anos antes do antigo jardim zoológico de Pablo Escobar, no vale do Magdalena, duzentos e cinquenta quilómetros a norte da capital colombiana. Está dado o mote para uma viagem aos meandros do narcoterrorismo, fenómeno de grande escala que assolou a Colômbia com maior incidência entre 1983 e 1994 e que foi responsável por mais de 50.000 mortes violentas, entre policias, jornalistas, juízes, candidatos à presidência do país ou simplesmente pessoas que se viram no sítio errado à hora errada. Uma viagem a um tempo perverso e obscuro em que os cartéis da droga ditavam a sua lei. Uma viagem, enfim, ao mundo daqueles que conservam ainda no seu mais fundo os estigmas do medo e buscam nos labirintos da memória a melhor forma de os exorcizar.
De forma hábil, Juan Gabriel Vásquez combina as histórias particulares de dois homens que se conhecem casualmente e desenvolvem uma curta mas intensa amizade, para nos fazer mergulhar na história recente da Colômbia. Esta é a sua forma de nos levar numa visita ao lado lunar dum país e dos dramas que se abrigam no íntimo dos muitos que se viram embrulhados na máquina trituradora chamada lucro fácil, essa “camioneta amarela de horários imprevisíveis e paragens indeterminadas”, da qual era necessário saber sair a tempo, “a abrir caminho à cotovelada por entre a sopa de lentilhas dos passageiros”. Ao longo do percurso, o leitor travará conhecimento com Ricardo Laverde, jovem entusiasta e empreendedor de uma família de classe média, e com a sua futura mulher, a americana Elaine Fritts, mais jovem ainda e plena de ideais, voluntária do Corpo de Paz a cumprir seis meses de permanência na Colômbia. Um percurso de ascensão fulgurante e de felicidade plena que irá entrar em queda livre e acabar em tragédia.
Seria exagerado dizer que “O Barulhos das Coisas ao Cair” é uma obra-prima, mas é inegável que se trata de um belo livro. À escrita envolvente, acrescenta Juan Gabriel Vasquéz um conjunto de apontamentos históricos que ajudam o leitor a situar-se no tempo e a compreender a vertigem em que os Estados Unidos se viram mergulhados nas décadas de 60 e 70 do século passado, tendo a Guerra do Vietname por epicentro de uma nova crise à escala global. Sobe a escalada racial, Cuba e os mísseis trazem o mundo em sobressalto. De súbito, está tudo a acontecer ao mesmo tempo e em toda a parte. Embora à distância, somos nós próprios testemunhas desse conflito insano e das ondas de choque que se fizeram sentir em todo o mundo, ainda que de modos diversos. Da Colômbia vêm nomes como os de Carlos Lehder ou Pablo Escobar, líderes na lista dos mais perigosos, ricos e poderosos homens do mundo. Na nossa memória, cidades como Medellín ou Cali são, ainda hoje, sinónimos de sangue e dor. Mas é sobre o “peixe miúdo” que o escritor lança o seu olhar, carregando-o de dramatismo, mas também de humanidade. Um belo livro, repito.
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