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sábado, 8 de julho de 2023

LIVRO: "Canções para o Incêndio"



LIVRO: “Canções para o Incêndio”,
de Juan Gabriel Vásquez
Título original | “Canciones para el incendio” (2018)
Tradução | Guilherme Pires
Ed. Alfaguara, Fevereiro de 2023


“Era difícil formar um círculo como das outras vezes, porque as duas ladeiras eram desiguais e escorregadias, mas lá conseguiram aproximar-se do túnel (um desses túneis em que cabe uma pessoa de pé) e criar o espaço onde Choco e Pinzón, que há algum tempo tinham vontade de se bater, puderam por fim esmurrar-se. Fizeram-no de mãos nuas, sem correntes nem navalhas, e talvez por isso Choco, que era mais alto e mais pesado que Pinzón, depressa tenha começado a ganhar uma certa vantagem. Mais tarde, os rapazes falariam das manchas ensanguentadas nas paredes do canal, algumas em forma de mãos apoiadas para evitar quedas, e falariam também dos gritos que ecoavam dentro do túnel, dos gritos de entusiasmo e também de ódio. Mas foi difícil levá-los a falar do que aconteceu no fim, quando Choco já tinha atirado Pinzón ao chão e este se defendia com a cabeça na água suja, contorcendo-se como um besouro de barriga para cima.”

À beira do rio, uma fotógrafa descobre na mentira a verdade de um político de segunda linha. De duas bolas coloridas no fundo de um saco de veludo cor de vinho, depende o futuro de dois amigos. Uma mulher aproxima-se de um homem, coloca-lhe três notas muito valiosas na mão e pergunta se pode confiar nele. Um piloto de helicópteros conta a sua história enquanto, no televisor, o Irão marca dois golos aos Estados Unidos e ganha um jogo que é muito mais do que parece. Um empresário desaparece de Bogotá e é encontrado morto num quarto de hotel, em Jacksonville, na Flórida. Ao correr da pena, Juan Gabriel Vasquéz tem para oferecer, com este seu mais recente livro, um conjunto de nove contos, o último dos quais lhe serve de título. Neles se percebe uma forte unidade narrativa. São contos amargos, espécie de portfólio de uma Colômbia marcada pela violência, repleto de figuras sinistras e mesquinhas que empurram o país na direcção do desastre, mas também de pessoas altruístas, generosas e de uma enorme coragem, que não desistem dos ideais de liberdade e de justiça.

É o país que faz as pessoas ou, pelo contrário, são as pessoas que fazem o País? É não tanto de um lugar, de uma pátria que é a sua, que Juan Gabriel Vasquéz nos fala. Figura omnipresente, a Colômbia é posta pelo escritor ao serviço de cada conto e não para se servir deles. Em segundo plano, surge na figura dos voluntários que, nas brigadas estrangeiras, combateram o inimigo alemão durante a Primeira Guerra Mundial, tal como surge nos contigentes que, ao lado dos Estados Unidos, fizeram a Guerra da Coreia nos anos 50. Está na Guerra Civil despontada pelo assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, conflito conhecido como La Violencia e cujos efeitos se fazem sentir ainda hoje, como está no narcotráfico, fenómeno que se arrasta desde o início da década de 60 do século passado e que, até à data, responde pela morte de pelo menos 260.000 colombianos, na sua grande maioria civis. Mas são as pessoas que se destacam com as suas histórias individuais que, como veremos, são histórias de todos, todos os dias. De tão apropriado, apetece dizer que “cada conto acrescenta um ponto” ao drama colectivo dos colombianos. Irmanadas na dor e no medo, as várias personagens mostram de que forma resistem ao convívio diário com o fenómeno da violência, encontrando num gesto, num sinal, a estreita linha que separa a vida da morte.

Mas se este é um livro sobre as pessoas - e, nomeadamente, as que sucumbiram por, na maioria dos casos, se encontrarem no sítio errado à hora errada -, ele é-o sobre uma pessoa em particular: o próprio autor. Não é difícil perceber que, por detrás da ficção, se esconde um Juan Gabriel Vasquéz com as suas dúvidas, os seus dilemas, os seus fantasmas, as suas interrogações (ele que precisou de se afastar do seu país durante mais de quinze anos para puder vê-lo com olhos de ver). Há passagens do livro que remetem para realidades que o próprio terá vivido, personagens com as quais se terá cruzado, factos que terá investigado, lugares que terá visitado. As pessoas, os lugares, as datas ou os factos podem não corresponder à verdade, mas o escritor esteve ali, perguntou-se o porquê de as coisas terem acontecido daquela forma e tomou a decisão firme de as colocar em forma de contos. E que bem que o faz, acrescentando às suas qualidades de romancista as de genial contista. Da leitura de “Canções para o Incêndio” extrai-se um genuíno prazer, tanto pela apreciação de cada um dos contos como da possibilidade que se oferece de se puderem cruzar entre si. E mesmo que sejamos alheios a esta realidade, não pudemos deixar de sentir uma enorme angústia com a leitura dos contos e, simultaneamente, de ver neles vidas que nos tocam. Que poderiam ser as nossas ou as daqueles que nos são próximos.

sábado, 6 de novembro de 2021

LIVRO: "O Barulho das Coisas ao Cair"



LIVRO: “O Barulho das Coisas ao Cair”,
de Juan Gabriel Vásquez
Texto original | “El ruido de las cosas al caer” (2011)
Tradução | Vasco Gato
Ed. Alfaguara, Outubro de 2020


“É tudo, tudo o que tenho. Não me peça que lhe dê pormenores, Yammara, falar dos seus próprios erros não é fácil para ninguém. E eu tenho os meus, como toda gente. Fiz merda, claro. Fiz merda da grande. Você é muito jovem, Yammara, tão jovem que talvez permaneça virgem num desses erros. Não me refiro a pôr os cornos à sua namoradinha, não é isso, não me refiro a ter comido a namoradinha do seu melhor amigo, isso são coisas de meninos. Refiro-me aos erros de verdade, Yammara, que é uma coisa que você ainda não conhece. E ainda bem. Aproveite, Yammara, aproveite enquanto puder: somos felizes até fazermos certa merda, e depois não há forma de recuperar o que éramos antes. Enfim, é o que estou para confirmar nestes dias. A Elena vem aí e eu vou tentar recuperar o que havia antes.”

Bogotá, 2011. A foto a meia página numa revista mostra um grupo de caçadores em volta de um animal abatido, uma grande mole escura e rugosa que jaz agora por terra. De forma trágica, chegavam ao fim os dias de liberdade de um hipopótamo fugido dois anos antes do antigo jardim zoológico de Pablo Escobar, no vale do Magdalena, duzentos e cinquenta quilómetros a norte da capital colombiana. Está dado o mote para uma viagem aos meandros do narcoterrorismo, fenómeno de grande escala que assolou a Colômbia com maior incidência entre 1983 e 1994 e que foi responsável por mais de 50.000 mortes violentas, entre policias, jornalistas, juízes, candidatos à presidência do país ou simplesmente pessoas que se viram no sítio errado à hora errada. Uma viagem a um tempo perverso e obscuro em que os cartéis da droga ditavam a sua lei. Uma viagem, enfim, ao mundo daqueles que conservam ainda no seu mais fundo os estigmas do medo e buscam nos labirintos da memória a melhor forma de os exorcizar.

De forma hábil, Juan Gabriel Vásquez combina as histórias particulares de dois homens que se conhecem casualmente e desenvolvem uma curta mas intensa amizade, para nos fazer mergulhar na história recente da Colômbia. Esta é a sua forma de nos levar numa visita ao lado lunar dum país e dos dramas que se abrigam no íntimo dos muitos que se viram embrulhados na máquina trituradora chamada lucro fácil, essa “camioneta amarela de horários imprevisíveis e paragens indeterminadas”, da qual era necessário saber sair a tempo, “a abrir caminho à cotovelada por entre a sopa de lentilhas dos passageiros”. Ao longo do percurso, o leitor travará conhecimento com Ricardo Laverde, jovem entusiasta e empreendedor de uma família de classe média, e com a sua futura mulher, a americana Elaine Fritts, mais jovem ainda e plena de ideais, voluntária do Corpo de Paz a cumprir seis meses de permanência na Colômbia. Um percurso de ascensão fulgurante e de felicidade plena que irá entrar em queda livre e acabar em tragédia.

Seria exagerado dizer que “O Barulhos das Coisas ao Cair” é uma obra-prima, mas é inegável que se trata de um belo livro. À escrita envolvente, acrescenta Juan Gabriel Vasquéz um conjunto de apontamentos históricos que ajudam o leitor a situar-se no tempo e a compreender a vertigem em que os Estados Unidos se viram mergulhados nas décadas de 60 e 70 do século passado, tendo a Guerra do Vietname por epicentro de uma nova crise à escala global. Sobe a escalada racial, Cuba e os mísseis trazem o mundo em sobressalto. De súbito, está tudo a acontecer ao mesmo tempo e em toda a parte. Embora à distância, somos nós próprios testemunhas desse conflito insano e das ondas de choque que se fizeram sentir em todo o mundo, ainda que de modos diversos. Da Colômbia vêm nomes como os de Carlos Lehder ou Pablo Escobar, líderes na lista dos mais perigosos, ricos e poderosos homens do mundo. Na nossa memória, cidades como Medellín ou Cali são, ainda hoje, sinónimos de sangue e dor. Mas é sobre o “peixe miúdo” que o escritor lança o seu olhar, carregando-o de dramatismo, mas também de humanidade. Um belo livro, repito.