LIVRO: “Felicidade”,
de João Tordo
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Outubro de 2020
“Quando saímos do Condes, Esperança fez o caminho até casa muito calada, a carteira ao colo, os olhos postos na janela do carro. Enquanto eu estacionava o Opel, ela perguntou: Acreditas em fantasmas? Puxei o travão de mão; reparei nas pernas nuas da minha mulher a emergirem da saia de xadrez. Apeteceu-me tocá-las; apeteceu-me levá-la para Monsanto, mas havia alguns anos que não o fazíamos. Claro que não, acabei por responder, os fantasmas não existem.”
Mesmo correndo o risco de me repetir, João Tordo e a sua escrita ocupam um lugar muito especial nas minhas preferências de leitura. A fórmula infalível de entremear o certo com o incerto, o palpável com o etéreo, convidando o leitor a seguir até ao fim os caminhos da dúvida com as certezas possíveis, são nele uma marca distintiva muito forte e que faz com que cada um dos seus livros seja uma viagem de busca e descoberta, de prazer sempre renovado. “Felicidade”, romance que conta praticamente um ano desde que foi publicado, é disso um dos mais acabados exemplos. Nele se condensam, em doses generosas e perfeitamente equilibradas, aquilo que admitimos como sendo real e o seu ficcionado contraponto, o que é consubstanciável e o que pertence ao domínio do oculto, as geografias precisas (e reconhecíveis) e os lugares sem nome que a mente constrói e alimenta. Nele estão, num processo de continuidade com os seus anteriores livros, a existência enquanto passagem sem propósitos claros, o prazer e o sexo como meios dos quais nem sempre se percebem os fins e o medo e a morte como verdadeiros motores do acto de existir.
Nesta história de um rapaz que, aos dezassete anos, vê a sua vida ligar-se irrevogavelmente à de três irmãs gémeas, “bonitas, seguras, determinadas, fonte de desejos e fantasias inalcançáveis”, aquilo que verdadeiramente conta é o imponderável, o destino e as suas partidas, o riso descarado de um deus manipulador que puxa os cordelinhos a seu bel-prazer para nos ver “às aranhas” numa vida a descambar para a morte. João Tordo fala-nos daquilo que tanto gosta de falar, das encruzilhadas que se abrem à existência de cada um, de um certo livre-arbítrio que na sua origem tem muito pouco a ver com a razão e tudo a ver com o “pathos”, a sua ferida mais primordial. Daí que não seja difícil para o leitor colar-se à personagem deste rapaz, identificar-se com ela, viver a sua aventura naquilo que tem de bom, mas também no que de funesto e desditoso vem a afligi-lo, intuindo que nesta coisa de sortes e azares cada um terá guardado o seu próprio bocado.
Nascida de um sonho que o autor teve na sua adolescência tardia, “Felicidade” é mais um exemplo de ficção com traços autobiográficos, a componente imaginária fortemente esotérica ou não fosse este sonho a história de um jovem casal em que a mulher morre em pleno acto sexual. Este é o gatilho para uma série de peripécias que acabam por condicionar toda a existência do parceiro sobrevivente, mergulhando-o numa espiral auto-destrutiva, o seu mundo a ruir aos bocadinhos, as forças para torcer a desdita a deixarem-no para trás e a fitarem-no do outro lado da rua. Mestre na arte da escrita, João Tordo leva ao extremo a condição deste homem, fazendo-o derrapar em ambientes manhosos, a roçar o absurdo e o non sense. No limite, o autor deixa cair a máscara, revelando um lado omnipotente e omnisciente que o torna no deus de que falava há pouco. Repleto de tiradas hilariantes, misturadas com outras bem negras, “Felicidade” oferece momentos de deliciosa leitura, sem, contudo, deixar de nos convidar a reflectir naquilo que somos.
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