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segunda-feira, 27 de setembro de 2021

LIVRO: "Bairro Sem Saída"



LIVRO: “Bairro Sem Saída”,
de Fernando Ribeiro
Edição | Diana Garrido
Ed. Suma de Letras, Maio de 2021


“A Célia, cuja tia tudo sabia acerca do Bairro por trabalhar na afrutaria do Careca, apontou para a varanda e perguntou-me se eu sabia quem era aquela. Eu não sabia nada. Só sabia que tinha nascido, que andava por ali a criar-me, que tinha medo do Duas-Cabeças lá de baixo, e que queria, tanto, mas tanto, enfiar a pila numa miúda com ponto de ter estado a pensar, quando levantaram o andor, como seriam as cuecas da santa por baixo do imaculado alvor do vestido, se as trazia vestidas de todo e porque não faziam as santas com mais relevo, mais curvas de mulher.”

É num bairro degradado de uma cidade-dormitório às portas da capital que tudo se passa. Os ímpetos libertários de Abril fazem-se sentir ainda com intensidade e a luta de classes extravasa dos prédios para as ruas e destas para outros bairros igualmente degradados, para outras cidades periféricas, também elas cidades-dormitório. Apanhado num torvelinho de emoções, procuração passada às hormonas para pensarem por si, Rogério Paulo sente o Bairro e o clamor como algo orgânico, parte intrínseca do seu eu que importa defender como se de uma luta pela própria sobrevivência se tratasse. Na sua esteira, seguimos por ruas e becos desordenados e atulhados de lixo, entramos em prédios onde tudo é precário e conhecemos as mais improváveis figuras, do Mário que passa a vida a enfiar doçaria pela goela abaixo “e não engorda, o cabrão”, ao Fonseca “culturão”, comunista dos quatro costados que roubou um quadro do MNAA para financiar a revolução; do Galamba que guarda em si toda a história do Bairro, à Célia “que tinha sardas e se calhar até já tinha aberto as pernas a um rapaz”.

Rogério Paulo nasceu na Brandoa, “o bairro mais clandestino da Europa”. Faltavam 19 minutos para as quatro da manhã do último dia de Fevereiro de 1969, no preciso momento em que o País era abalado por um sismo de magnitude 7,9 na Escala de Richter. Talvez este pormenor não seja uma mera curiosidade e Fernando Ribeiro, autor de “Bairro Sem Saída”, se sirva do fragor do terramoto para se situar a si próprio, também ele um filho do Bairro, nascido em pleno fulgor de Abril, o País a sofrer as réplicas de uma revolução menina de berço ainda. É nestas águas revoltas que o livro mergulha, ao encontro de uma realidade que o autor conhece bem, o que acaba por conferir a este seu primeiro romance um cunho marcadamente autobiográfico. Vocalista e letrista da banda portuguesa de metal gótico Moonspell, Fernando Ribeiro lança-se num desfiar de memórias marcantes, fazendo delas a argamassa de uma construção literária que surpreende pela solidez das personagens e pelo dinamismo das peripécias.

Fernando Ribeiro firmou-se no propósito de encontrar o tom certo para o seu livro e conseguiu-o. Palavra afiada, sem eufemismos nem preconceitos linguísticos de qualquer espécie, “Bairro Sem Saída” sabe ser duro sem magoar. Não recusa cumplicidades mas fica fulo quando percebe que os olhares são de comiseração. Imensamente divertido, consegue essa proeza de rir-se de si próprio, convidando o leitor a fazer o mesmo. Não é redundante, tão pouco é boçal, embora muitas das suas personagens o sejam. É, sobretudo, um livro honesto pelas verdades que encerra, pela ilusão que dele se desprende, pelos sonhos que estão ali a comandar a vida. É um livro que galopa sem sela, joelhos fincados num dorso nu, suores que se misturam, um resfolegar que cresce em doida correria, um clamor de liberdade soprado aos quatro ventos. Entretanto, cresceram as garras ao capitalismo, as assimetrias agravaram-se, o populismo tomou conta da política e os mais débeis são triturados pelas máquinas que transformam nomes em números. Tudo isto (e muito mais) aconteceu. Mas houve um tempo - e isso ninguém nos tira! - em que ousámos sonhar.

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