Páginas

sábado, 2 de outubro de 2021

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #51



CERTAME: Shortcutz Ovar Sessão #51
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 14 anos
30 Set 2021 | qui | 21h30 


Referencial incontornável para os cinéfilos vareiros, de há um ano e meio a esta parte, a Escola de Artes e Ofícios abriu as portas para a sexta sessão da presente temporada do Shortcutz Ovar. Numa sala repleta de juventude e entusiasmo, o público foi o grande protagonista da noite, ainda mais interessado e participativo do que habitualmente face às propostas apresentadas. Intensos, desafiantes, provocantes, controversos, duvidosos, crus, os filmes de Miguel De, Pedro Rilhó e Vasco de Oliveira foram motivo de acesa discussão e debate, abrindo as mais variadas perspectivas sobre os assuntos abordados e tornando ainda mais viva e rica a sessão. Não se terá falado tanto de cinema como é habitual, dos seus aspectos mais técnicos às interpretações, antes reflectiu-se sobre as emoções, o impacto dos vários temas no mais íntimo do espectador. Enquanto objecto artístico, cada uma das obras cumpriu esse desígnio maior de abordar a realidade sob as mais diversas formas, polarizando-a ou tornando-a mais nítida, abrindo assim espaço ao questionamento sobre nós próprios e sobre o mundo que nos rodeia. Uma enorme sessão, em suma.

Filme experimental com pouco menos de nove minutos, “The Kiss” abriu as hostilidades com o propósito imediato de abalar consciências (as mais conservadoras e todas as demais). Partindo do filme homólogo de 1896, realizado por William Heise, “um escândalo para a altura”, Miguel De editou numa peça única um conjunto de beijos, tendo como fonte a imensa oferta pornográfica que paira na internet. Estamos aqui muito longe da puerilidade de “Cinema Paraíso”, tão pouco dos “beijos técnicos” das telenovelas. São beijos fortemente “lubrificados”, alheios ao género dos parceiros, acompanhados duma panóplia de sons sugestivos, que Miguel De amplia e repete até à exaustão. A sequência está ali para provocar desconforto, mas sobretudo para interrogar os critérios de cada um numa hipotética classificação da obscenidade e da sua censura, no todo ou em parte. O poder do algoritmo que “censura o mamilo da mulher mas não o do homem” foi posto em causa e, com ele, ampliou-se a discussão aos direitos autorais, à forma como a produção artística se vê condicionada nas redes sociais e, até, aos casos de polícia. O começo perfeito de uma noite que, tão cedo, não se apagará da memória de todos.

Mais contido mas nem por isso menos perturbador, “Give Up The Ghost” é uma ficção de Pedro Rilhó que gira em torno de um beijo que, no dizer de um dos parceiros, foi tudo menos consensual. Saltando para fora da esfera íntima, o momento acabou por constituir um verdadeiro abalo na auto-representação de um mundo apenas esboçado, as réplicas a prolongarem-se no tempo e a afectarem profundamente o viver e o sentir dos envolvidos. Mas será que as coisas poderiam ter corrido de outra forma? Despindo-se de tudo, de uma verdade tocante, Pedro Rilhó colou as suas próprias vivências às de uma das personagens, oferecendo-nos um retrato marcadamente autobiográfico, o que o torna ainda mais inquietante. Legitimá-lo através daquilo que pode ser visto como a exorcização dos seus fantasmas (daí o título do filme), uma espécie de “psicoterapia pelo cinema”, será uma das leituras possíveis do filme, mas aquilo que passou da igualmente prolongada discussão foi a necessidade de repensar o consentimento, o abuso e o trauma, conceitos cada vez mais voláteis mas nem por isso menos importantes e cujas marcas se perpetuam no tempo.

Para o final estava reservado “A Vaca de Fogo”, filme de Vasco de Oliveira anunciado como um “musical” e que, por esse motivo, recolhia enormes expectativas. Deste ponto de vista, falando em termos pessoais, o desapontamento não poderia ter sido maior. Os traços característicos do género surgem apenas esporadicamente e os critérios para a sua utilização causam no espectador mais estranheza do que simpatia. O filme, todavia, tem uma história poderosa, decorrente de uma relação homossexual que envolve um menor e acaba por cair na alçada da justiça. Na esfera do chamado “filme de tribunal”, “A Vaca de Fogo” remete, tal como os filmes anteriores, para as balizas que definem e regulam a moralidade e as emoções e de que modo essa regulação é castradora, colidindo com o sentir de cada um. Uma intervenção acalorada mas tremendamente oportuna de uma das espectadoras sobre o poder do cinema e a forma como pode condicionar comportamentos e alimentar o indesejável e o ilícito marcou o momento de debate, mas aquilo que fica é, uma vez mais, o Homem e a sua circunstância. José Ortega Y Gasset passou por aqui.

Sem comentários:

Enviar um comentário