Depois da Sertã, onde esteve patente no âmbito da Maratona de Leitura daquele município, a exposição temática “Bibliotecas Itinerantes - Lugares de Futuro” fez-se à estrada, acabando por “estacionar” na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Escolar Oliveira Lopes, em Válega. Com curadoria de Rui Guedes, Carlos Marta e Bento Ramires, a mostra tem para oferecer ao visitante duas dezenas de painéis que, congregando um breve mas significativo olhar sobre a quase totalidade das oitenta e uma bibliotecas itinerantes existentes actualmente no nosso País, mostram que há aqui um trabalho junto das populações que vai muito além da simples entrega e recolha de livros. As crianças em ordeira fila no interior da carrinha da Biblioteca de Vale de Cambra, a Tasca dos Livros que anuncia para a Ilha Terceira “livros fresquinhos, revistas saborosas, jornais intensos e outras novidades” ou a garrida Biblioteca sobre Rodas, um lustroso Renault 4 da Câmara Municipal de Vizela, são algumas das imagens que podem ser apreciadas e que carregam consigo esse cheirinho nostálgico das nossas próprias incursões junto das saudosas Citroën HY, obrigando-nos a recuar aos tempos do extinto Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian.
Perante uma reduzida plateia, os três curadores desta exposição tiveram a primazia de inaugurar as mesas da sétima edição do Festival Literário de Ovar, em conversa moderada por Carlos Nuno Granja. Partilhando as suas memórias e reflectindo sobre o presente e o futuro destes equipamentos, os convidados falaram da biblioteca itinerante como “um prolongamento do largo da aldeia”, das amizades que se fazem e consolidam à volta dos livros, das brincadeiras e dos risos das crianças fruto daquilo a que chamaram “a magia da carrinha”. O tacto necessário para dar a ler às crianças aquilo que elas realmente querem é algo que se aprende: “Se uma turma de miúdos gosta de bolas de berlim, não vamos pôr-lhes pastéis de nata lá no meio. Levamos-lhes bolas de berlim. Perceber isto dá muito trabalho mas dá também um enorme gozo”, disse Rui Guedes. A desertificação do interior e a forma como uma biblioteca itinerante pode quebrar o isolamento ficou bem vincada nas palavras de Bento Ramires: “Visitamos lares, berçários, chegamos a ir a casa dos leitores… Estamos hoje mais vezes com as pessoas do que os seus próprios familiares.”
Mas será que há futuro para as Bibliotecas Itinerantes? “Um imenso futuro”, afirmam de forma unânime. “Os territórios vão ficando mais pequenos, mas é maior a proximidade, a presença, a troca de informação com a sede do Concelho. E, depois, é cada vez mais fácil dotar uma carrinha de bons livros, de mecanismos de controlo informatizado, de programas de gestão de catálogos”, refere Carlos Marta. Esta visão é corroborada por Rui Guedes, fazendo notar que, “numa altura de pandemia em que o ‘take away’ se encontra tão solidamente implantado, nós levamos a leitura ao domicílio, algo que faz parte do ‘código genético’ de qualquer biblioteca itinerante”. Com a conversa a caminhar para o final, Guedes lembrou ainda que “não somos a carrinha do ‘Family Frost’, não precisamos de nos anunciar. Basta sabermos chegar ao local, abrirmos a porta, baixarmos o degrau da carrinha e sentarmo-nos a ler um livro. Toda a gente sabe imediatamente o que está ali”. A festa vem por acréscimo, digo eu, fazendo fé nas palavras dos três e no pequeno recital de canto e poesia que tinham preparado para o final.
O melhor, porém, estava ainda para vir. Foi quando Carlos Marta puxou dos seus apontamentos e, numa voz pausada, nos leu um texto que escreveu e intitulou “A Carrinha Número 18”, que o verdadeiro mundo das Bibliotecas Itinerantes se abriu por inteiro ante o nosso olhar e os nossos corações. Foi aí que assistimos ao seu nascimento “nos locais mais recônditos de um país forçado a ser inculto por um regime opressor” e que hoje, em democracia, continua “promovendo a leitura e combatendo medos”. As marcas dos leitores, as suas alegrias e tristezas, os seus medos e sonhos, podemos encontrá-las em cada recanto desta biblioteca sobre rodas. É lá que descobrimos a leitora assídua de tantos anos que, de repente, devolveu os livros porque “tinha casado e o marido proibiu-a de ler”. Também a idosa que “trazia os livros na taleiga do pão para que as vizinhas não lhe chamassem doida por vir à biblioteca”. Ou o cavador que, de enxada aos ombros, pediu para ler Platão, explicando num sorriso que “um dia o filho tinha esquecido um texto do filósofo em cima da mesa. Leu-o, gostou e queria conhecer mais sobre a sua obra”. E ainda o leitor com mais de noventa anos e tanto saber acumulado que dizia que se morresse, os livros não iriam desaparecer. Carlos Marta conclui: “E assim foi. Um dia alguém trouxe os livros dizendo que o Senhor Moura tinha falecido. Enganou-se. Ele viaja na Carrinha Número 18!”.
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