de Alexandra Lucas Coelho
Ed. Tinta-da-china, Novembro de 2016
“Alô, você aí dentro da nuvem, não finge que não escuta, sabia que já não tenho saco para essa pose de me-crucifiquem, essa cara de bondade eterna, esse cabelo? Por acaso você conhece alguém na Galileia com esse cabelo? Aliás, por acaso você conhece alguém na Galileia ainda? E aqui, vai-me dizer que conhece alguém? Minha mãe, por exemplo, você conhece? É que ela conhece muito bem você, mas eu ainda não vi uma prova de que você mereça. Está-me escutando, seu filho de Deus? ALÔÔÔÔÔÔÔ?”
Começo a ler “Deus-dará” e, como de costume, a tirar algumas notas. Cedo, porém, me dou conta de que a informação é tanta e tão valiosa que prosseguir com esta tarefa se afigura empresa impossível. Por um lado, corro o risco de transcrever quase na íntegra o livro para o caderno; mas, sobretudo, percebo que, a continuar assim, irei rapidamente perder o fio à meada desta chuva em catadupa de palavras, cores, sons e perfumes, aglutinadas no viver e sentir das gentes em permanente ebulição e adoçada com o cheiro gostoso da canela que se desprende de cada gesto, de cada fala, de cada mensagem. Melhor mesmo é entregar-me por inteiro a esta estonteante canção que tem como ponto de partida o encontro entre o Velho e Novo Mundo a atar portugueses e brasileiros, gente cruzada com gente gerando gente, e que transforma cada página num grito de amor e dor, de liberdade e opressão, de beijo e agressão, de luta e de luto.
Como se quisesse contrariar a “Felicidade” de António Carlos Jobim, a autora elege a quarta-feira como o primeiro destes “sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Sete dias e sete céus, sete sóis, sete luas, sete curvas, sete chakras da energia. Sete vidas, sete dores. Sete milhões de amores, tantos quantos os habitantes da segunda cidade mais populosa do Brasil. Contando a história de Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel e Noé, Alexandra Lucas Coelho toma-nos pela mão e faz-nos descer o Cosme Velho até aos bairros de Jacarepaguá, Água Santa, Inhaúma ou Engenho de Dentro, ao Complexo do Alemão, da Maré ou da Cidade de Deus, à ilha de Paquetá, à praia de Copacabana ou ao Corcovado, cruzando vidas e sortes que mostram até que ponto tudo muda para que tudo fique na mesma. Um “requiem tropical” que, com mais ou menos açúcar, nos vem lembrar que alguém permanece livre porque nasceu branco e exerce o poder sobre alguém escravo porque nasceu negro.
Recorrendo ao olhar do cinema, direi que ler “Deus-dará” é assistir a um documentário ficcionado onde a maioria das sequências são filmadas num único plano, a câmara à mão, frenética, nervosa, em sobressalto constante. Há depois o zoom in e o zoom out, um olhar que pousa sobre a Serra dos Orgãos, que se abate sobre a floresta, entra no terreiro e depois na casa até se centrar em cada uma das figuras que, vestidas de branco, participam no rito da ayahuasca. Ou sobre Inês sentada à janela da Charutaria Syria, depois do plano se fechar sobre o espaço da loja, mais ainda sobre a pracinha em triângulo da Rua Buenos Aires com a estátua do Mascate, e sobre o Saara, o maior shopping a céu aberto do mundo, com as suas mais de 1200 lojas. Finalmente, o grande plano, olhos nos olhos com figuras tão distantes e distintas como Pedro Álvares Cabral ou Dirk Van Hogendorp, Machado de Assis ou Jaime Cortesão, o padre jesuíta José de Anchieta ou o imã Abdurrahman al-Baghdadi, Pêro Vaz de Caminha ou Rafael Bordalo Pinheiro, Garrincha ou o rinoceronte Ganda. Ainda Nicolau Coelho.
Com um olho na moral e outro no malandro, o que Alexandra Lucas Coelho faz é misturar a História, a Política, a Sociologia, a Etnologia e todas as restantes ciências sociais e humanas nesse enorme caldeirão fumegante que é a Cidade Maravilhosa, a pior cidade do mundo à excepção de todas as outras. Daí resulta um milhão de leituras possíveis, uma das mais claras dando conta que Portugal continua a mostrar-se incapaz de olhar o seu passado além da aventura e de reconhecer as consequências dos seus actos, persistindo em ignorar a violência do colonialismo nos discursos que produz sobre os “Descobrimentos” e em reduzir a história à auto-estima. Complementarmente, é-nos proposta uma sensacional playlist onde cabem Carmen Miranda e Jards Macalé, Luís Gonzaga e Vinicius de Moraes, João Bosco e Tom Jobim, Adriana Calcanhotto e Seu Jorge, Caetano Veloso e Chico Buarque, MC Funkero e MC Pensador, gravações feitas no Alto Rio Negro, “cosmogonias, cosmologias” e uma Avé Maria de Schubert, ao meio dia, “oferecimento altifalante da Igreja de São Judas Tadeu”. À qual acrescentaria o “irmão do meio” que, com Gabriel o Pensador, nos diz que isto anda tudo ligado.
Não gostaria de terminar esta (anormalmente longa) recensão sem transcrever mais um excerto do livro, demonstrativo da sua força visual e da mensagem política que lhe subjaz em cada página, em cada frase: “Conforme as incursões da polícia, a cracolândia pode mover-se de quadra ou para outra favela, mas hoje não tem novidade. A kombi avança ao longo da Maré, vira à direita, estaciona. De um lado da rua, armazéns, caminhões parados; do outro, papelões, colchões, plásticos, trapos, lixo, e gente saindo de tudo isso, a ver quem chega. Cheira a podre, um funk brada: QUEM PODE ACABAR COM A GUERRA / NÃO QUER QUE A GUERRA ACABE.” Talvez porque a selva seja tão perto, talvez porque o morro seja tão alto, talvez porque a vida seja tão perigosa, talvez porque se possa pedir tudo ao Cristo, menos que ele seja o grande guarda-nocturno desta Sodoma incorrigível, parece-me não haver outra forma de o dizer: “Deus-dará” é foda!
Como se quisesse contrariar a “Felicidade” de António Carlos Jobim, a autora elege a quarta-feira como o primeiro destes “sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Sete dias e sete céus, sete sóis, sete luas, sete curvas, sete chakras da energia. Sete vidas, sete dores. Sete milhões de amores, tantos quantos os habitantes da segunda cidade mais populosa do Brasil. Contando a história de Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel e Noé, Alexandra Lucas Coelho toma-nos pela mão e faz-nos descer o Cosme Velho até aos bairros de Jacarepaguá, Água Santa, Inhaúma ou Engenho de Dentro, ao Complexo do Alemão, da Maré ou da Cidade de Deus, à ilha de Paquetá, à praia de Copacabana ou ao Corcovado, cruzando vidas e sortes que mostram até que ponto tudo muda para que tudo fique na mesma. Um “requiem tropical” que, com mais ou menos açúcar, nos vem lembrar que alguém permanece livre porque nasceu branco e exerce o poder sobre alguém escravo porque nasceu negro.
Recorrendo ao olhar do cinema, direi que ler “Deus-dará” é assistir a um documentário ficcionado onde a maioria das sequências são filmadas num único plano, a câmara à mão, frenética, nervosa, em sobressalto constante. Há depois o zoom in e o zoom out, um olhar que pousa sobre a Serra dos Orgãos, que se abate sobre a floresta, entra no terreiro e depois na casa até se centrar em cada uma das figuras que, vestidas de branco, participam no rito da ayahuasca. Ou sobre Inês sentada à janela da Charutaria Syria, depois do plano se fechar sobre o espaço da loja, mais ainda sobre a pracinha em triângulo da Rua Buenos Aires com a estátua do Mascate, e sobre o Saara, o maior shopping a céu aberto do mundo, com as suas mais de 1200 lojas. Finalmente, o grande plano, olhos nos olhos com figuras tão distantes e distintas como Pedro Álvares Cabral ou Dirk Van Hogendorp, Machado de Assis ou Jaime Cortesão, o padre jesuíta José de Anchieta ou o imã Abdurrahman al-Baghdadi, Pêro Vaz de Caminha ou Rafael Bordalo Pinheiro, Garrincha ou o rinoceronte Ganda. Ainda Nicolau Coelho.
Com um olho na moral e outro no malandro, o que Alexandra Lucas Coelho faz é misturar a História, a Política, a Sociologia, a Etnologia e todas as restantes ciências sociais e humanas nesse enorme caldeirão fumegante que é a Cidade Maravilhosa, a pior cidade do mundo à excepção de todas as outras. Daí resulta um milhão de leituras possíveis, uma das mais claras dando conta que Portugal continua a mostrar-se incapaz de olhar o seu passado além da aventura e de reconhecer as consequências dos seus actos, persistindo em ignorar a violência do colonialismo nos discursos que produz sobre os “Descobrimentos” e em reduzir a história à auto-estima. Complementarmente, é-nos proposta uma sensacional playlist onde cabem Carmen Miranda e Jards Macalé, Luís Gonzaga e Vinicius de Moraes, João Bosco e Tom Jobim, Adriana Calcanhotto e Seu Jorge, Caetano Veloso e Chico Buarque, MC Funkero e MC Pensador, gravações feitas no Alto Rio Negro, “cosmogonias, cosmologias” e uma Avé Maria de Schubert, ao meio dia, “oferecimento altifalante da Igreja de São Judas Tadeu”. À qual acrescentaria o “irmão do meio” que, com Gabriel o Pensador, nos diz que isto anda tudo ligado.
Não gostaria de terminar esta (anormalmente longa) recensão sem transcrever mais um excerto do livro, demonstrativo da sua força visual e da mensagem política que lhe subjaz em cada página, em cada frase: “Conforme as incursões da polícia, a cracolândia pode mover-se de quadra ou para outra favela, mas hoje não tem novidade. A kombi avança ao longo da Maré, vira à direita, estaciona. De um lado da rua, armazéns, caminhões parados; do outro, papelões, colchões, plásticos, trapos, lixo, e gente saindo de tudo isso, a ver quem chega. Cheira a podre, um funk brada: QUEM PODE ACABAR COM A GUERRA / NÃO QUER QUE A GUERRA ACABE.” Talvez porque a selva seja tão perto, talvez porque o morro seja tão alto, talvez porque a vida seja tão perigosa, talvez porque se possa pedir tudo ao Cristo, menos que ele seja o grande guarda-nocturno desta Sodoma incorrigível, parece-me não haver outra forma de o dizer: “Deus-dará” é foda!
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