de Mário Lúcio Sousa
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Setembro de 2019
“Amanheço no Mindelo, S. Vicente. Está um crepúsculo tão boreal que só me apetece despir, abraçar o mar, ver a orla azul e amar ela. A brisa manhaneira salpica meu rosto, e os meus olhos de água abaixo estão. Passamos pelo Porto Grande, pela linda baía, subimos uma ladeira e parámos. Chegamos à cadeia. Dois guardas fisgam-me com cara de porcos amigos. Hirtos diante deles estão dois agentes da PIDE com cara de cães.”
Gabriel Pedro, Edmundo Pedro, Pedro Santos Soares, Pedro José da Conceição, Pedro Benge, Pedro Pacavira, Pedro Chimbinda, Preto Mancanha e Pedro Martins. A coincidência no nome e as histórias que se descobrem por detrás de cada uma destas figuras são o fio condutor de “O Diabo Foi Meu Padeiro”, romance centrado no viver e sentir dos presos políticos que, ao longo de quase quatro décadas, passaram pelo Campo de Concentração do Tarrafal, aí deixando a saúde e, em muitos casos, a vida. Centrado nos Pedros que, no “campo da morte lenta”, comeram o pão que o diabo amassou, o livro oscila entre o real e o ficcionado, convergindo na história dos perto de 340 antifascistas portugueses e dos 226 nacionalistas africanos (106 angolanos, 100 guineenses e 20 cabo-verdianos) que, por seu livre pensamento, enfrentaram condições de reclusão bárbaras e desumanas.
Preservar a memória e passar o testemunho. Tal será, porventura, a maior virtude de “O Diabo Foi Meu Padeiro”, visto os crimes cometidos no Tarrafal permanecerem como um dos mais fortes libelos acusatórios contra o regime fascista de Salazar e Caetano. O ignominioso tem como marco fatídico o dia 29 de Outubro de 1936, com a primeira leva de 152 presos políticos a inaugurarem formalmente o Campo de Concentração do Tarrafal e o seu brutal reduto: uma vasta área cercada de arame farpado e fortemente vigiada, numa zona inóspita, com condições climáticas adversas, sem água potável e cujos princípios orientadores estabelecidos para o seu funcionamento eram marcados pela violência e arbitrariedade permanentes. “Daqui ninguém sai com vida... quem vem para o Tarrafal vem para morrer”, diziam os responsáveis do Campo, sentença complementada pela afirmação do médico de que a sua função não era tratar da saúde dos presos, antes passar certidões de óbito.
Numa altura em que se cumprem 45 anos do fecho do Campo de Concentração do Tarrafal, Mário Lúcio Sousa presta, com este livro, uma sentida homenagem a todos quantos passaram pela mais sombria prisão do Estado Novo, recuperando histórias e memórias que dizem muito do engenho e da coragem, da solidariedade e da resiliência, destes homens que aqui cumpriram penas elevadas, muitos deles sem sequer terem sido julgados, e que, nalguns casos, lá permaneceram para além das penas determinadas. Da infame frigideira aos livros que Luandino Vieira aqui escreveu e que saíram da prisão graças à cumplicidade de uma mulher analfabeta, do fel constante na boca por conta da biliosa às “notícias da retrete” que chegavam via Rádio Moscovo, são infindáveis as histórias narradas neste livro que nos falam duma verdade que alguns teimam em querer ver apagada. Mário Lúcio Sousa é disto o oposto. Nascido no Tarrafal há 55 anos, no seio de uma família praticamente analfabeta, aprendeu a viver com parcos recursos, a conviver com a morte desde muito pequeno e a escrever histórias desde cedo. A sua escrita, forte, emotiva, visceral, é o reflexo das suas vivências e da sua forma de estar, comprometida com a justiça e a liberdade. Ler “O Diabo Foi Meu Padeiro” é percorrer, com a razão e o coração, caminhos de luta e resistência.
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