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quinta-feira, 5 de março de 2020

LIVRO: "A Noite em que o Verão Acabou"



LIVRO: “A Noite em que o Verão Acabou”, 
de João Tordo 
Edição | Clara Capitão 
Ed. Companhia das Letras, Novembro de 2019


“Jerome David recebeu-me em roupão e chinelos. Sentámo-nos no alpendre da casa e ele disse-me que tinha lido o meu primeiro romance. Imediatamente intuíra quem eu era. Não fez qualquer apreciação ao livro, limitou-se a dizer que conhecia a razão pela qual eu escrevia e que sabia que eu atravessaria o deserto que ele atravessara havia décadas. Foi ele que me ensinou que a literatura não é o princípio, mas o fim; aquilo que só se alcança quando já estamos praticamente mortos, e as palavras são a única coisa que ainda nos liga à vida, o fio invisível que nos mantém à superfície.”

Admirador confesso de João Tordo e habituado a enfrentar a sua escrita ao longo de quinhentas ou mais páginas, foi com entusiasmo que me atirei a este seu último trabalho e me deixei enredar na densa malha de acontecimentos que terão, como fim último, descobrir quem matou Noah Walsh. Com base numa confissão voluntária, o tribunal dá como provado que as seis facadas que desfiguraram e tiraram a vida ao milionário foram desferidas pela sua filha Levi, uma adolescente de 16 anos, mas talvez as coisas não sejam tão lineares assim. É isso que Laura, a irmã de Levi, e Pedro Taborda, amigo da família Walsh e aspirante a escritor, irão desvendar, mergulhando irremediavelmente num mar de segredos que envolve a pequena comunidade de Chatlam.

Sem pretender interferir com a leitura que cada um fará de “A Noite em que o Verão Acabou”, importa dizer que este é um daqueles livros que mantêm o leitor em suspenso até à última página. João Tordo evidencia-se uma vez mais pela qualidade da sua escrita, doseando com conta, peso e medida os ingredientes do thriller, a acção sem deslizes, omissões ou contradições, a intensidade e emoção em crescendo até ao desfecho final. Marcando os diálogos pela naturalidade da linguagem e pelos apontamentos bem humorados, fazendo deslocar a acção por geografias precisas e detalhando com rigor pessoas e lugares – da perfeição das formas do corpo de uma adolescente, às sombras de um esconso quarto de hotel ou a uma invasão de borboletas monarcas –, o livro adquire um tom marcadamente cinematográfico, uma pitada de O Silêncio dos Inocentes entre a ética de Alfred Hitchcock e a estética de David Lynch. 

Apesar deste livro ser apresentado como o primeiro thriller de João Tordo, nada do que aqui surge é propriamente novo. Quem leu “Hotel Memória”, o seu segundo livro, saberá muito bem do que falo e, sobretudo, o próprio autor, que não dispensa em “alojar-se” no Memory Hotel na sua passagem por Nova Iorque. De facto, para além de toda uma trama judiciosamente orquestrada e com propósitos bem definidos, “A Noite em que o Verão Acabou” oferece-nos também deliciosos apontamentos sobre o processo de escrita e sobre “a nossa necessidade de mentir”, afinal “o lugar de onde nascem todas as histórias”. Chega a ser comovente a forma como o escritor se despe de preconceitos e, assumindo o egoísmo, a monomania e a sofreguidão de aplauso face aos méritos que acha que deve merecer mais do que ninguém, acaba por confessar que “o sucesso é o pior de todos os males”. Fá-lo através de um escritor mais velho, uma espécie de mentor, abrindo novos caminhos à leitura do livro, tornando-o mais denso e profundo, ainda. Mais fascinante!

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