LIVRO: “A Noiva do Tradutor”,
de João Reis
Ed. Elsinore, Fevereiro de 2018
“Assino, a mão treme-me misteriosamente, é um efeito dos suores frios, fosse o dinheiro roubado e não estaria em pior estado, levo uma vida degradada e degradante, sem Helena pereço no fogo eterno que consome o mundo, sou arrastado pelos turbilhões de chamas alimentadas por carne humana, os gritos são ensurdecedores, a caneta foge-me das mãos, as assinaturas foram feitas sem esmero, pode ser fraqueza, faria melhor se comesse alguma coisa, porém, não consigo, pensar em comida é secundário, um ser indestrutível não deveria necessitar dela, no entanto, sou um mísero tradutor, não valho o ar que respiro, (...)”.
Uma tremenda ironia percorre as páginas deste livro, a começar pelo título, essa “noiva do tradutor”, de quem saberemos apenas chamar-se Helena e que, a bordo de um navio, segue rumo ao norte, deixando o “noivo” com o pedido de não a procurar nunca mais. Desfeito com a separação, angustiado, desnorteado, mas acreditando sempre que a sua noiva voltará, o tradutor encara o futuro com as devidas reservas, procurando agarrar-se a algo que possa justificar a sua actual situação. Ao longo de pouco mais de 24 horas, o leitor é convidado a acompanhá-lo, seguindo os seus passos, assistindo às suas conversas, partilhando as suas emoções e mergulhando no mais fundo dos seus pensamentos. No final restará a certeza de que, por maiores que possam ser os problemas, haverá sempre forma de os resolver.
Tal como em “A Devastação do Silêncio” e “Eu Servi Gil Vicente”, João Reis reflecte neste livro sobre a condição humana, devolvendo-nos um retrato pormenorizado deste tradutor naquilo que verdadeiramente é: um idiota, de mal consigo e com o mundo, a não valer o ar que respira, as suas convicções a terem como único destino o fracasso. O eléctrico no qual viaja é um antro de bestialidade, a senhoria é uma megera, os amigos uns interesseiros, os editores uns cabeças de jerico, os críticos literários uns impotentes, todos vivem de aparências, têm traumas mal resolvidos. O próprio país “é uma pocilga, nem um Estado consegue ser, é um remendo, um trapo desgastado pelo tempo que vive de ilusões sobre uma passada grandeza, habitado por um povo que mais depressa parte do que muda”. Tudo é grotesco, obsceno, absurdo!
Fazendo-nos recuar no tempo, “A Noiva do Tradutor” marca encontro com uma sociedade repleta de contradições, empenhada em adaptar-se aos novos ditames da modernidade. Entre as ruas enlameadas e o macadame, a luz das velas e a electricidade, a charrete e o automóvel, o dinheiro no banco ou guardado na almofada, o livro traz-nos um retrato de época contundente, marcado pelo sarcasmo e por um sentido de humor refinado, que nos vem provar que, no espaço de um século, esta peculiar maneira de “ser português” pouco ou nada mudou. Aproximando-se em demasia do objecto da sua escrita, João Reis mostra-se exímio na composição de figuras sórdidas e distorcidas, as quais percebemos por inteiro se guardando a devida distância. Povoado de imagens, sons e cheiros (!) – hilariante a passagem do cheiro a queimado durante a consulta com Madame Rasmussen – “A Noiva do Tradutor” é a afirmação de que leitura é sinónimo de prazer. E, no demais, kartofler, kartofler, kartofler!
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