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domingo, 9 de fevereiro de 2020

TEATRO / POESIA: "Para Atravessar Contigo O Deserto Do Mundo"



TEATRO: “Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo”
Criação, dramaturgia e interpretação | Lúcia Moniz e Pedro Lamares
Direcção | Pedro Lamares
Direcção técnica e desenho de luz | Joaquim Madaíl
Produção e difusão | Maria Miguel Coelho
Projecto | Casca de Noz
55 Minutos | Maiores 16 anos
Cine-Teatro de Estarreja
08 Fev 2020 | sab | 21:30



No início de Novembro de 1919, com apenas quatro dias de diferença, nasciam Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, dois dos maiores vultos da literatura portuguesa. Foi no início da sua carreira literária que o destino dos dois poetas se cruzou, daí resultando uma amizade que se viria a fortalecer e consolidar ao longo do tempo. Desgostoso com o rumo que Portugal seguia, Sena exilou-se com a família no Brasil em finais de 1959 e, mais tarde, depois da afirmação da ditadura militar brasileira, partiu para os Estados Unidos, onde viria a morrer em 1978. Por cá ficou Sophia, também ela amargurada com este País onde “o saloismo da maioria dos intelectuais é quase inacreditável e as fortes desilusões fazem perder o ânimo”. A correspondência trocada entre ambos, para além do seu valor literário e estético, constitui um impressionante retrato social, histórico e moral do Portugal dos anos 60 e 70, o retrato de um país roubado. É disto que nos fala “Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo”, o espectáculo de teatro-poesia que Lúcia Moniz e Pedro Lamares laboriosa e cuidadamente montaram e que ontem à noite foi apresentado no Cine-Teatro de Estarreja.

“A dicção não implica estar alegre ou triste / Mas dar minha voz à veemência das coisas / E fazer do mundo exterior substância da minha mente / Como quem devora o coração do leão / Olha fita escuta / Atenta para a caçada no quarto penumbroso.” A luz cerra-se ao estritamente necessário e Lúcia Moniz dá voz a Sophia no poema “Arte Poética”, para logo Pedro Lamares declamar “Os Trabalhos e os Dias”, de Jorge de Sena: “Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro / E princípio a escrever como se escrever fosse respirar / O amor que não se esvai enquanto os corpos sabem / De um caminho sem nada para o regresso da vida. / À medida que escrevo, vou ficando espantado / Com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada. / Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito. / Vem, teimosa, com alegria de eu ficar alegre, / Quando fico triste por serem palavras já ditas / estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos. / Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem. / E os convivas que chegam intencionalmente sorriem / E só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo / E desenhei uma rena para caçar melhor / E falo da verdade, essa iguaria rara: / Este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.”

Misturando a poesia de Sophia e de Jorge de Sena com excertos da correspondência trocada entre ambos, a peça resulta num exercício de intertexto precioso: “Intertexto entre dois poetas, entre dois actores, intertexto de afetos e uma luta comum, entre o mundo que temos e o que queremos”, pode ler-se no Programa do espectáculo. Enquanto as palavras de um e de outro fluem, profundas e livres, vamo-nos dando conta da riqueza de imagens que contêm, de como são belas no seu interior, de como tocam as cordas da nossa mais funda existência. De como se revelam tão claros poemas que sabemos de cor. Alternadamente ou em simultâneo, os actores desvendam segredos e trocam poemas, aproximando e tornando íntima a poesia e a vida. Brilhante a interpretação a duas vozes de “Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo” ou de “Uma Pequenina Luz”. A cumplicidade que leva Sophia a confessar a Jorge de Sena a dor da perda da mãe encontra um paralelo na emoção que se desprende da voz de Pedro Lamares e Lúcia Moniz ao declamarem “Terror De Te Amar” ou “Dia Do Mar”. Sophia e Jorge de Sena mostram-se por inteiro.

E assim se ouviram os poetas noite afora. “(...) Toca a silêncio, ó clarim do Mundo! / Toca a silêncio, agora, manda adormecer / Esta humanidade frenética de saber que existe. / Manda que durma e sonhe de si própria / A existência que sabe e que não tem!” As palavras duras de “Natal de 45” fundem-se com “A Paz Sem Vencedor E Sem Vencidos”, as vozes em uníssono a crescer, as emoções à flor da pele. “A Cor da Liberdade” e “25 de Abril” - “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo” - cheiram a cravos rubros e cantam auroras de uma felicidade imensa que sabe tão bem lembrar. Como sabe bem – mas custa – lembrar “Em Creta, Com O Minotauro”, “Eis-Me” ou “Porque Os Outros Se Mascaram Mas Tu Não”, tristeza e raiva em partes iguais a virem ao de cima. “Mas o silêncio e a raiva por continuarmos vivos é o nosso destino de escritores lusos, passados os 50 anos, a menos que – perdoa-me, Sophia, que o diga – se seja o teu admirado Torga, suficientemente não moderno para agradar a toda a gente. Porque nesse país de rasca chinela a gente não pode nem deve atrever-se a ser “moderno”, a menos que copie expressamente o que as Franças e Araganças tenham decretado que o é”, escreve Jorge de Sena.

O espectáculo caminha para o final. Lá fora adivinham-se adeptos ruidosos a fazerem a festa no final do embate entre Porto e Benfica, mas dentro da sala o silêncio só não é de ouro porque um irritante telemóvel se lembra de tocar duas vezes ou, a espaços, alguém desembrulha papel de rebuçado num maléfico estertor de celofane. Sophia recusa a pasta da Secretaria de Estado da Cultura – “penso que um artista não deve ser Governo, mas sim influenciar os governantes” - e Jorge de Sena grita, alto e bom som, “Não, Não, Não Subscrevo...” - “(...) Ah, povo, povo, quanto te enganaram sonhando os sonhos que desaprenderas! (...)”. Sophia “Com Fúria e Raiva” acusa o demagogo, lembra que “nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda” e evoca “Catarina Eufémia”, a terra bebendo um sangue duas vezes puro. “Meu canto se renova / E recomeço a busca / Dum país liberto / Duma vida limpa / E dum tempo justo”. Poesia, poesia, poesia... e vida. “E a busca da justiça continua”.

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