LIVRO: “O Dia Em Que Estaline
Encontrou Picasso Na Biblioteca”,
de Alice Brito
Ed.
Editorial Planeta, Maio de 2015
Picasso e Estaline, ou
a crónica de um encontro improvável. Numa biblioteca, local
perfeito para um encontro. É assim que se anuncia o segundo romance
de Alice Brito, a ficção a fintar o real já que de encontros entre
o pintor e o líder soviético não reza a História. Que Picasso
nutria uma enorme simpatia por Estaline é publico e notório, sendo
igualmente verdade que desenhou, para a revista literária “Lettres
Françaises”, um retrato do líder soviético que acabou por gerar
uma enorme controvérsia. E, ainda, que veio a receber o “Prémio
Internacional Estaline para o Fortalecimento da Paz Entre os Povos”,
isto numa altura em que a desestalinização já se tinha encarregado
de substituir o nome de Estaline pelo de Lenine. Mas nada de
encontros entre os dois, com calorosos apertos de mão. Tão longe um do outro e, no entanto,
tão perto.
Com “O Dia Em Que Estaline Encontrou Picasso Na Biblioteca”, aquilo que Alice Brito tem para nos propor é uma deliciosa metáfora das relações humanas, ou de como, as mais das vezes sem nos darmos conta, a verdade se oculta debaixo dos nossos olhos. Orquestrando a trama com minúcia e engenho, a autora traz a Europa para cima do palco, fazendo incidir as luzes mais intensas sobre a incontornável cidade de Setúbal. Os cenários sucedem-se e, com eles, os tempos e os lugares da História. Matosinhos, Beja, Lisboa, Paris, Barcelona. Guerra Civil de Espanha, II Guerra Mundial, Estado Novo, o Maio de 68, o 25 de Abril, a “troika”. Andreu Nin, Hitler, Franco, Salazar, a PIDE, o KGB. Em cena, as personagens do romance – Julinha, Atiliano, Justina, Joaquim Manso, Juan, Maria Bento, Maria da Liberdade, Dulce, David, Nuno, Josefina e uma grande quantidade de “actores secundários” - vão-se mostrando, sabiamente conduzidas por Alice Brito, ela própria abandonando, de quando em vez, a penumbra dos bastidores e dando-se a ver na primeira pessoa.
Intercalando passado e presente, a autora vai narrando a história de uma família à medida que tece uma trama delicada e precisa do pulsar do Velho Continente. Este é também um trabalho de bastidor, sendo que o bastidor, neste caso, é “aquele aro de madeira onde se mete o bordado para esticar o pano e nele bordar com dedos finíssimos o desenho que a linha e agulha vão prosseguindo num prévio traçado de um olhar competente”. Já nas derradeiras páginas, uma breve frase tem o condão de assumir o livro por inteiro: “Sou um contentor da História do século XX”. A Alice Brito cabe o mérito de narrar os ciclos da História, lembrando que “o passado não é inocente”. Se depressa os muros se levantam, se muito duram, também de repente, ou mais depressa que de repente vêm abaixo. É disto que “O Dia Em Que Estaline Encontrou Picasso Na Biblioteca” nos fala, com a clarividência e a riqueza de imagens que só uma grande escritora consegue transmitir.
Sem comentários:
Enviar um comentário