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domingo, 16 de fevereiro de 2020

CINE-CONCERTO: "J'accuse!"



CINE-CONCERTO: “J’accuse!” 
Realização | Abel Gance 
Argumento | Abel Gance 
Fotografia | Marc Bujard, Léonce-Henri Burel, Maurice Forster 
Montagem | Andrée Danis, Abel Gance 
Interpretação | Romuald Joubé, Maxime Desjardins, Séverin-Mars, Angèle Guys, Maryse Dauvray, Mancini, Elizabeth Nizan, Pierre Danis, Blaise Cendrars, Paul Duc 
Produção | Charles Pathé 
Música | Philippe Schoeller (estreia em Portugal) 
Direcção musical | Christian Schumann 
Interpretação | Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música 
França | 1919 | Drama, Horror, Guerra | 167 Minutos | M/12 
Casa da Música, Sala Suggia 
15 Fev 2020 | sab | 18:00


“…war is futile. Ten or twenty years afterward, one reflects that millions have died and all for nothing. One has found friends among one's old enemies, and enemies among one's friends.” 
Abel Gance

Considerado um dos grandes filmes pacifistas da história do Cinema, “J'accuse!”, de Abel Gance, faz inteiramente jus aos seus créditos, desvendando os horrores da guerra nas suas mais diversas vertentes. Morte, violações, stress pós-traumático, vidas desfeitas e sonhos perdidos, são a demonstração plena de que ninguém sai vencedor de eventos desta natureza. Foi este épico francês do tempo do cinema mudo que se apresentou na vasta e belíssima Sala Suggia da Casa da Música ao final da tarde de ontem, perante uma plateia razoavelmente bem composta. Com ele veio também, em estreia no nosso País, uma nova partitura musical para o filme, da autoria de Philippe Schoeller, interpretada ao vivo pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, sob a direcção fervorosa de Christian Schumann. 

Oscilando entre os registos melodramático e épico, esta “tragédia moderna em três épocas” acompanha o destino funesto de um triângulo amoroso, que se vê arrastado, transfigurado e desfeito pelos ventos da guerra. Estreado em Abril de 1919, poucos meses depois da assinatura do armistício da Primeira Guerra Mundial, o filme trouxe uma enorme projecção internacional ao cineasta Abel Gance, considerado por muitos como o “Griffith francês”, pelo fôlego épico e pela complexidade narrativa que soube imprimir aos seus filmes. Recuperando o título do famoso artigo de 1898 de Emile Zola, pela defesa de Dreyfus, “J’accuse!” aplica-se na denúncia dos horrores da guerra, com a sua procissão de mortes inúteis. Se, no final, os mortos ressuscitam e, com o dedo acusador apontado aos vivos, colocam em causa a sua conduta, são também eles que exigem que os sobreviventes sejam dignos do seu sacrifício e que, portanto, a sua morte não tenha sido em vão.

“J'accuse” é um filme igualmente notável na sua inventividade formal. Abel Gance mostra que o Cinema era, na sua concepção, uma arte resolutamente moderna, violenta, mecânica e flexível, cuja missão deveria ser – como afirmou em 1912 no seu manifesto “Qu’est-ce que le cinematographe” –, a evocação de todas as catástrofes da História, delas retirando a sua “lição objectiva imediata.” A montagem, que inclui cenas filmadas em pleno campo de batalha, mostra-se extraordinariamente dinâmica e surpreendentemente moderna, tirando o melhor partido das mais variadas técnicas cinematográficas – movimentos de câmara, sobreimpressões, efeitos de diafragma, tintagens – para construir um universo visual particularmente denso, em que se multiplicam as referências simbólicas, um inquietante bestiário, evocações alegóricas e uma materialidade quase táctil de mãos que se tocam e se apertam. 

O universo espectral em que “J’accuse!” se desenrola é mudo, mas não é silencioso. Não só as imagens nos fazem ouvir as ensurdecedoras explosões de obuses e os toques de clarim, como todo o filme é atravessado por música, lugar privilegiado da manifestação da emoção e do trauma. Foi em 2014, no contexto das comemorações oficiais do centenário da Grande Guerra, que a ZDF – Arte encomendou a Philippe Schoeller uma nova criação musical para acompanhar a projecção do filme. Embora fosse de temer o impacto causado por quase três horas de filme sobre matéria tão devastadora, a verdade é que assistir a este casamento notável entre duas artes maiores se revelou uma experiência emocionante. Radicalmente diferente dos anteriores acompanhamentos musicais de “J’accuse!”, a partitura de Schoeller explora as possibilidades tímbricas e de espacialização da orquestra sinfónica, da electrónica ao vivo e de um “coro virtual”, propondo “uma aliança do olhar e do ouvido”, na qual a música dialoga com a temporalidade própria do filme e se transforma num verdadeiro “campo magnético atravessado pela imagem”. O “dois em um” perfeito, num grande momento de música e cinema.

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