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quinta-feira, 11 de outubro de 2018

TERTÚLIA: "Conversas Úteis", com Afonso Reis Cabral



TERTÚLIA: “Conversas Úteis”,
com Afonso Reis Cabral
Museu de Ovar
10 Out 2018 | qua | 21:30


A provar que todos os momentos são bons quando o assunto é falar de livros, Afonso Reis Cabral esteve na noite de ontem no Museu de Ovar para um novo capítulo de “Conversas Úteis”. Moderada por Carlos Nuno Granja, esta foi mais uma sessão que resultou num excelente serão, com tanto de interessante como de enriquecedor. Numa altura em que acaba de lançar o seu segundo romance, o jovem autor apresentou-se perante uma plateia ávida de o ouvir falar da sua relação com a literatura, o novíssimo “Pão de Açucar” a capitalizar uma boa parte das atenções mas a deixar espaço suficiente a “O Meu Irmão”, obra de estreia deveras marcante, o Prémio Leya 2014 a coroar uma escrita sólida, madura e de enorme beleza.

E foi com “Pão de Açucar” que a conversa começou, Afonso Reis Cabral a afirmar ser este o romance que o torna escritor. Concretizando: “Comecei a escrever ‘O Meu Irmão’ com 22 anos, numa altura em que estava a tirar um mestrado, às voltas com uma bolsa de investigação e ainda um trabalho em part-time. Foi muito difícil conciliar todos os afazeres com a escrita e cheguei a ter dias em que só me apetecia dar um tiro em alguém. Talvez por isso é que demorei três anos e meio a escrevê-lo. Já ‘Pão de Açucar’ foi escrito em menos de sete meses, o dinheiro do Prémio Leya a dar-me a segurança necessária para deixar o emprego e dedicar-me por inteiro à escrita”.

Debruçando-se sobre “Pão de Açucar”, o escritor revelou tratar-se de um romance baseado na história de Gisberta, transsexual violentada e assassinada por um grupo de adolescentes num prédio em construção na cidade do Porto, um tema que abalou a sociedade à data dos acontecimentos, em Fevereiro de 2006. Escrever o livro correspondeu a um impulso na sequência de uma reportagem que viu sobre o caso, alicerçado em “investigação, entrevistas e muito trabalho de campo”, daí nascendo a necessidade de resolver um hiato neste caso que lhe pareceu claro: “Como é que um grupo de rapazes encontra Gisberta numa cave, a sua primeira reacção é ajudar e depois se passa disto para a violência com o resultado que conhecemos? Não é atacar um desconhecido, é atacar alguém com quem se tinham estabelecido laços”, refere, ao mesmo tempo que alude a “O Senhor das Moscas” para vincar a ideia.

Focando-se no processo de escrita, Afonso Reis Cabral volta-se agora para “O Meu Irmão”, a dificuldade maior residindo na criação da figura do narrador: “Na vida real, o meu irmão tem Síndrome de Down e não foi difícil desenhar a personagem com base na minha própria experiência. Difícil foi criar a figura do narrador, até porque eu não tinha nada de interessante na minha vida para contar”, confessa. Já o desafio de escrever “Pão de Açucar” foi muito diferente, a figura do narrador sendo um rapaz de 12 anos, uma situação social muito complicada, institucionalizado… e é ele que encontra Gisberta: “São realidades que me passavam ao lado e foram as conversas com outras pessoas que me permitiram definir as personagens. É de conseguir descobrir essas realidades e pô-las na pele das personagens que vive o livro, mas eu não consigo analisá-las e nem tenho de o fazer”, diz. Já quanto ao narrador, “ele conta uma história na qual é parte interessada, sendo, por isso, um narrador não fiável. No limite, não serei eu a manipular o leitor mas sim o Rafa”, conclui.


A conversa prossegue animada e aborda-se a força do real face à ficção, em particular no livro “Pão de Açucar”: “Este livro é sobre o mal. A partir do Capítulo 40 as coisas passaram-se exactamente assim. Há diálogos que são retirados textualmente do processo. É uma angústia saber que aquilo aconteceu daquela forma. Cheguei a ter pesadelos com o livro”, conta. Tempo também para falar dessa ideia errada de que a escrita é resultado da inspiração, com o escritor a referir que “95% do livro é trabalho, trabalho e mais trabalho” e a dar o exemplo de José Saramago, um homem que “escrevia como quem lavra a terra”. Fala-se ainda na relação com o leitor, a pessoa para quem o livro é escrito, em quem se pensa enquanto se escreve, ou não fosse a escrita dialógica: “Tem de haver alguém do lado de lá”, afirma. E ainda uma palavra de agradecimento para a sua editora, Maria do Rosário Pedreira, por ter mitigado as inseguranças em relação à escrita, ajudado a amenizar a solidão inerente ao acto de escrever e ter sabido ler e aconselhar em todos os momentos.


A conversa aproxima-se do fim e o espaço é agora de diálogo com os presentes. Não se furtando às questões que lhe foram sendo colocadas, Afonso Reis Cabral expôs a sua visão do escritor enquanto voz interveniente e moderadora perante a sociedade, falou das dificuldades em fazer passar a mensagem, contou de que forma lida com a crítica e de como o magoa a falta de honestidade intelectual, para regressar a “Pão de Açucar” e dizer que não há explicação para o mal, para a forma como ele se dissemina e para as variantes que assume. O final foi, como sempre, de confraternização, a troca de palavras com o leitor a estender-se pelo tempo das dedicatórias e autógrafos. Esta foi mais uma excelente tertúlia no espaço do Museu de Ovar, local onde se desenrolará novo capítulo já na noite de amanhã, dia 12 de Outubro, quando o escritor Silvério Manata e o escultor Alves André estiverem frente a frente com o público. A não perder!

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