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quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

LIVRO: "Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio"



LIVRO: “Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio”,
de Julieta Monginho
Ed. Porto Editora, Abril de 2021


“Desse amor desesperado por uma terra alheia, ignorada pelo dono, nascera o cante. Nasceram as lágrimas e a raiva do pai antes do pai antes do filho, e neste se destinavam aos sucessores. Por isso Mário, expulso da sucessão, deambulara de cidade em cidade evitando os encontros, recusando tudo o que ameaçasse durar mais de uma noite. De todos os perigos, o maior era a palavra. De todas as palavras, a mais ameaçadora: submissão.”

Socorro-me da metáfora que toma conta de uma boa parte de “Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio” e, apanhado pelo dilúvio que tudo arrasta à sua frente, debato-me no mar de ideias que Julieta Monginho me oferece. Debalde esbracejo, procuro manter-me à tona da água, luto com todas as forças para me agarrar a algo. Soçobro, afundo-me. Se fizesse uso da gíria futebolística, diria que “nunca cheguei a entrar no jogo”. E tentei. Deus sabe que tentei. Quis muito perceber as figuras que se desprendem de alguns dos mais importantes quadros que se dão a ver nas paredes do Rijksmuseum, encontrar nelas o porquê de se tornarem palpáveis. Também procurei ver para lá de um barco feito Arca de Noé, onde vogam à deriva um homem e sua mãe, uma mulher e um “pinto calçudo”. Não fui capaz. Restou-me a certeza da dor e da amargura que habita cada uma das personagens. Tudo o mais escapou-me, como areia por entre os dedos.

Tento percorrer o labiríntico processo que estará na génese deste livro. A história de uma família disfuncional terá sido um dos pontos de partida. Um homem dividido nos seus caminhos, que guarda em si toda a raiva do mundo, partilha com o filho o centro da história. Há na fuga uma pulsão a uni-los, ainda que fujam para sítios diferentes. A partir daqui a narrativa flui, ao sabor da imaginação de Julieta Monginho, refém de uma lógica que à autora assiste. A ela o poder de abrir ou fechar a acção, tornar as personagens opacas ou dar-lhes um cunho transparente. As palavras reflectem um mundo pessoal e quero acreditar que a autora terá retirado um enorme prazer das soluções que foi encontrando para levar a história por diante. O trabalho terá sido árduo, mas recompensador. Mas, e o leitor? Que chaves lhe deu para abrir as portas desse seu mundo? Será ele suficientemente hábil ao ponto de conseguir abri-las? Ou terá perdido as chaves?

No início de um novo ano, Sandra Barão Nobre partilhava no seu blogue [AQUI] um artigo onde, a linhas tantas, dizia algo que, há algum tempo, toma conta das minhas inquietações. Para ela, “se a leitura não estiver a ser prazerosa e/ou proveitosa, põe-se o livro de parte e parte-se para outro, porque a nossa esperança média de vida não se coaduna com a quantidade avassaladora de livros que estão à espera da nossa atenção, especialmente aqueles que parecem ter sido escritos de propósito para cada um de nós.” Livros como este reforçam a minha convicção de que é hora de pôr de parte os sentimentalismos. O cerimonial que envolve a escolha e a compra de um livro, a expectativa criada à beira da primeira página, o carinho com que o folheamos, parece incompatível com este “pôr de parte”, mas é chegado o tempo de assumir actos e aceitar consequências. Ou bem que sou inflexível face ao desprazer da leitura, ou bem que sou masoquista. E de masoquismos “Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio” curou-me. Agradeço-lhe, ao menos, isso.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

LIVRO: "Um Muro no Meio do Caminho"



LIVRO: “Um Muro no Meio do Caminho”,
de Julieta Monginho
Ed. Porto Editora, Fevereiro de 2018


“Queria conhecê-los. Pisar o chão que pisaram à chegada. Reparar nas pedras que lhes empeçam os passos, tentar afastá-las. Procurar o caminho mais curto entre o que lhes é devido e o que está à sua espera.
Registar para que muitos mais reparem.
Descobrir palavras salvadoras.
Não desperdiçar um único minuto, não omitir um único gesto.
Caminhar entre distâncias, o périplo, o abraço.”

Se o tempo não fosse um bem tão precioso e a leitura não implicasse entrega e paixão, eleger um livro não seria um risco. Avesso a sinopses, desconhecendo praticamente tudo acerca da autora e da sua obra e apenas com a imagem de capa a estimular a minha curiosidade, foi assim que parti à descoberta de “Um Muro no Meio do Caminho” como o faço sempre: O coração desarmado, à espera de me surpreender, de me espantar, de me deixar afectar pelo que leio. Devo confessar, porém, que estava longe de imaginar que Julieta Monginho me iria confrontar com um relato emocionado das vivências de “J., uma entre muitos”, voluntária portuguesa num campo de refugiados na ilha de Chios, na Grécia, sublinhando os contornos mais sombrios dessa crise humanitária que mantém milhares de refugiados às portas da Europa, reféns de agendas políticas e de interesses refractários ao drama e à dor.

Apesar de ser este um assunto merecedor das minhas maiores preocupações, a nota de surpresa inicial deu rapidamente lugar à inquietação e à dúvida no que respeita à escolha do livro, sobretudo porque este é o género de leitura que exige um tempo e uma atenção “de qualidade”, ou seja, maior disponibilidade emocional e dedicação plena. Também uma maior condescendência, que isto de escrever com o coração está provado que raramente resulta em grande literatura. Certo é que as primeiras páginas pareciam confirmar os meus piores receios, muitas emoções à flor da pele, muita lágrima à espreita, o “cor de rosa” a dominar as histórias da “rapariga que desenhava sonhos”, da “rapariga grávida” e da “mulher que ficou só”. A autora haverá de emendar a mão a partir do momento em que desvia o foco dos refugiados, fazendo-o incidir sobre si própria e sobre aqueles que, como ela, estão ali em missão humanitária. Então, aquelas “pessoas encalhadas no pesado tempo que lhes coube” começam a ganhar espessura e tornam-se reais, como real se torna o abanão que cada página passa a acarretar.

Fazendo assentar a ficção em factos reais, Julieta Monginho revela-se eficaz na forma como passa a mensagem de uma Europa que, no melhor dos casos, vota os refugiados ao esquecimento e, no pior – cada vez mais vasto –, ao desprezo. Face à incerteza, totalmente vulneráveis, estas pessoas confrontam-se com uma insustentável falta de condições, serviços de saúde precários, alimentação inadequada, Organizações Não Governamentais manietadas na sua vocação auxiliadora e muita gente a lucrar com tudo isto, para vergonha de todos. É isto que, através de dez histórias de vida, a autora nos conta, ao mesmo tempo clamando pela aplicação dos instrumentos de direito internacional que assegurem a protecção dos refugiados e o direito à reunificação familiar. Talvez não possamos falar de grande literatura quando falamos de “Um Muro no Meio do Caminho”, mas há um dever de gratidão para com Julieta Monginho, pelo uso da palavra como arma de denúncia e combate. Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.