LIVRO: “Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio”,
de Julieta Monginho
Ed. Porto Editora, Abril de 2021
“Desse amor desesperado por uma terra alheia, ignorada pelo dono, nascera o cante. Nasceram as lágrimas e a raiva do pai antes do pai antes do filho, e neste se destinavam aos sucessores. Por isso Mário, expulso da sucessão, deambulara de cidade em cidade evitando os encontros, recusando tudo o que ameaçasse durar mais de uma noite. De todos os perigos, o maior era a palavra. De todas as palavras, a mais ameaçadora: submissão.”
Socorro-me da metáfora que toma conta de uma boa parte de “Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio” e, apanhado pelo dilúvio que tudo arrasta à sua frente, debato-me no mar de ideias que Julieta Monginho me oferece. Debalde esbracejo, procuro manter-me à tona da água, luto com todas as forças para me agarrar a algo. Soçobro, afundo-me. Se fizesse uso da gíria futebolística, diria que “nunca cheguei a entrar no jogo”. E tentei. Deus sabe que tentei. Quis muito perceber as figuras que se desprendem de alguns dos mais importantes quadros que se dão a ver nas paredes do Rijksmuseum, encontrar nelas o porquê de se tornarem palpáveis. Também procurei ver para lá de um barco feito Arca de Noé, onde vogam à deriva um homem e sua mãe, uma mulher e um “pinto calçudo”. Não fui capaz. Restou-me a certeza da dor e da amargura que habita cada uma das personagens. Tudo o mais escapou-me, como areia por entre os dedos.
Tento percorrer o labiríntico processo que estará na génese deste livro. A história de uma família disfuncional terá sido um dos pontos de partida. Um homem dividido nos seus caminhos, que guarda em si toda a raiva do mundo, partilha com o filho o centro da história. Há na fuga uma pulsão a uni-los, ainda que fujam para sítios diferentes. A partir daqui a narrativa flui, ao sabor da imaginação de Julieta Monginho, refém de uma lógica que à autora assiste. A ela o poder de abrir ou fechar a acção, tornar as personagens opacas ou dar-lhes um cunho transparente. As palavras reflectem um mundo pessoal e quero acreditar que a autora terá retirado um enorme prazer das soluções que foi encontrando para levar a história por diante. O trabalho terá sido árduo, mas recompensador. Mas, e o leitor? Que chaves lhe deu para abrir as portas desse seu mundo? Será ele suficientemente hábil ao ponto de conseguir abri-las? Ou terá perdido as chaves?
No início de um novo ano, Sandra Barão Nobre partilhava no seu blogue [AQUI] um artigo onde, a linhas tantas, dizia algo que, há algum tempo, toma conta das minhas inquietações. Para ela, “se a leitura não estiver a ser prazerosa e/ou proveitosa, põe-se o livro de parte e parte-se para outro, porque a nossa esperança média de vida não se coaduna com a quantidade avassaladora de livros que estão à espera da nossa atenção, especialmente aqueles que parecem ter sido escritos de propósito para cada um de nós.” Livros como este reforçam a minha convicção de que é hora de pôr de parte os sentimentalismos. O cerimonial que envolve a escolha e a compra de um livro, a expectativa criada à beira da primeira página, o carinho com que o folheamos, parece incompatível com este “pôr de parte”, mas é chegado o tempo de assumir actos e aceitar consequências. Ou bem que sou inflexível face ao desprazer da leitura, ou bem que sou masoquista. E de masoquismos “Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio” curou-me. Agradeço-lhe, ao menos, isso.
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