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domingo, 22 de março de 2020

LIVRO: "A Educação dos Gafanhotos"



LIVRO: “A Educação dos Gafanhotos”, 
de David Machado 
Edição | Maria do Rosário Pedreira 
Ed. Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2020


“Às vezes perguntam-me onde é que eu estava no dia 11 de Setembro de 2001. Eu estava na Flórida, tinha passado a noite no carro ao lado do meu amigo Marco e ia a caminho de Key West para visitar a casa do Hemingway, acreditando que em breve seria livre.
Nenhuma dessas coisas veio a acontecer.”

Nesta aldeia a que chamamos mundo, cada vez mais pequenina por força das novas tecnologias e por aquilo a que damos o nome de progresso, querer conhecê-la de ponta a ponta é, hoje em dia, uma aspiração quase natural. No caso de David e Marco, dois amigos recém-licenciados, não será tanto um ponta a ponta mas mais um costa a costa, já que o seu projecto de aventura, descoberta e libertação, tem como destino os Estados Unidos. Com o Verão a despedir-se, entre Nova Iorque a Miami, somos convidados a sentar no banco de trás de um Ford Escort e a seguir estrada fora, ao encontro da América profunda. Embarcados numa espiral sem fim à vista, alimentada pela força da sua imaginação e capacidade de improvisação, os dois amigos acabam por “descer à terra” - e nós com eles - quando a realidade se impõe abruptamente, sob a forma de dois aviões colidindo com as torres gémeas.

Lançado estrada fora, entre o cliché turístico e a revelação mais surpreendente, “A Educação dos Gafanhotos” é um livro desempoeirado e muito divertido, que nos diz que é imperioso afastar o cinzentismo em que estamos mergulhados e dar mais cor às nossas vidas, mesmo que para isso tenhamos de correr riscos. David Machado volta a abrir mão do seu enorme talento e a tecer um conjunto de histórias que nos convidam à viagem e ao sonho, seja a ouvir jazz num bar do French Quarter, em Nova Orleães, de amarelo vestido em fila para visitar as Cataratas do Niagara ou confrontados com um jacaré de nome Wally à entrada do quarto de um Motel em Pensacola.

Embora o tom possa parecer demasiado ligeiro – aqui residindo, porventura, a sua maior fraqueza -, “A Educação dos Gafanhotos” oferece um ângulo de leitura extremamente interessante e que tem a ver com o exercício da escrita. Para lá da sua formação de base, Marco e David são amantes da boa literatura e aspiram, eles mesmos, a puderem tornar-se escritores. Tomando como modelos William Faulkner e Ernest Hemingway, os dois amigos aproveitam todas as oportunidades para se fazerem passar por quem não são, trazendo a ficção para o real, fazendo dos interlocutores as suas cobaias e dos bares, das estações de gasolina, dos motéis e das praças e ruas o seu laboratório. De tentativa em tentativa, entre o ensaio bem sucedido e a experiência frustrada, com um olho negro à mistura, o que David Machado nos diz é que não importa a viagem em si, mas a viagem depois da viagem.

segunda-feira, 12 de março de 2018

LIVRO: "Índice Médio de Felicidade"



LIVRO: “Índice Médio de Felicidade”,
de David Machado
Edição de Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações D. Quixote, Agosto de 2013


É de felicidade que este livro nos fala. Para além de implícito no título, o conceito derrama-se das suas páginas das mais variadas formas, da felicidade suprema à mais profunda infelicidade. Nele aprendemos a relativizar as coisas, a acreditarmos em nós, a não partirmos derrotados para cada nova batalha. E não, não é (mais) um livro de auto-ajuda. É antes uma ficção muito bem escrita, simples e comovedora, cuja leitura convoca, igualmente, conceitos como simplicidade e sinceridade ou, se quisermos, sensibilidade. Mas vamos por partes.

Comecemos pela felicidade. Será que é possível medi-la? O livro diz-nos que sim (pelo menos, uma das personagens do livro afirma que sim). Não que graduar a felicidade de cada um e compará-la com a dos outros possa mudar o que quer que seja. A subjectividade implícita no próprio conceito joga a favor dos mais cépticos e qualquer argumento em defesa duma escala devidamente parametrizada e que possa constituir-se em referência fidedigna está condenado ao fracasso. E, contudo, o homem moderno precisa disto, vive deste tipo de instrumentos, por mais falíveis que possam ser. No limite, serão uma forma de cada um provar a si próprio que, por muito baixa que esteja a sua auto-estima, a sua saúde, a sua conta bancária ou a sua felicidade, haverá sempre alguém pior ainda. Reflectir sobre a felicidade, a forma como a manipulamos ou somos manipulados, como “contaminamos” os outros ou nos deixamos (ou não) “contaminar”, é um caminho de leitura possível para “Índice Médio de Felicidade”, quiçá o mais desafiante e enriquecedor.

Falando agora de simplicidade, direi apenas que é algo inerente à escrita de David Machado. Porque esta é uma história simples, porque as personagens são simples e porque o escritor não perde o seu tempo com teorias sem sentido (algo que o parágrafo anterior poderia fazer supor). O tempo do livro é o tempo da troika, dum país mergulhado na austeridade e na precariedade, profundamente descrente e triste. É o tempo dum tempo demasiado presente para que os problemas das personagens não possam deixar de ser sentidos como nossos. E, no entanto, por muitas “portas” que se fechem e por muitos “passos” que não levem a lado nenhum, consegue haver sempre alguém com uma crença desmedida num futuro melhor, ainda que o mundo desabe com estrondo à sua volta. E aqui entram, finalmente, os conceitos de sinceridade e de sensibilidade. É que não basta forjar uma história, é necessário torná-la credível, levar o leitor a rever-se nela, a senti-la e a sentir a necessidade de agir. É este o mérito de David Machado e nisto reside a força deste livro extraordinário, um livro que, embora movendo-se num espaço sufocante, não descarta uma palavra de coragem e optimismo. Afectuoso, sensível e motivador, “Índice Médio de Felicidade” é uma lição de vida!