Dona de uma voz única e de um apurado sentido da elegância e sofisticação, Ana Moura editou em 2022 o seu sétimo álbum de estúdio, “Casa Guilhermina”, trabalho que persiste em afirmar-se como o capítulo mais livre e luminoso da sua trajetória artística. Através dele, a artista reafirmou a sua capacidade de abrir diálogos com o soul e o semba, a pop e os ritmos urbanos, num gesto de identidade e pertença que ignora convenções e transcende fronteiras. Foi isso que provou à saciedade na noite do passado sábado, perante o público do António Lamoso, trazendo para um plano central a figura da avó Guilhermina e construindo, a partir dela, um território afectivo onde memória, modernidade e experimentação se abraçam de forma intensa e livre. Essa pluralidade sonora - tão íntima quanto expansiva - ganhou forma perante uma sala lotada de um público que, desde os primeiros acordes, se deixou conduzir através de um universo em que tradição e futuro se abraçam, catalisados pela sedução e magia do fado. Entre cadências africanas, fados reinventados e momentos de pura comunhão emocional, Ana Moura confirmou o poder transformador do seu projecto, cuja força está não apenas no refinamento musical, mas na autenticidade de quem canta a sua própria história.
Assistir a “Casa Guilhermina” foi como aceitar um convite à viagem, fazendo nosso o sonho das andorinhas que reclamam asas para inaugurar um desejo antigo de partir. Entre golpes malévolos de faca e promessas por cumprir, Ana Moura ergue o fado impregnado de “loucura” como quem reclama os valores da própria ancestralidade e, debruçada em janela escancarada, deixa entrar a tempestade e o rio dos seus olhos. Depois, os jacarandás fazem renascer ausências que se mantêm vivas e o corpo entrega-se à roda quente das “primázias”, onde Angola curva a cintura e a avó Guilhermina, sentada na sua cadeirinha, acende a memória. Calunga aprofunda essa raiz, liturgia de lamento e resistência, antes de a leveza malandra de uma “corridinha” devolver o sorriso ao quotidiano. Há ternura adolescente em “classe” e um balanço suspenso em “arraial triste”, a marcha e o mar unidos num mesmo fôlego. Entre mães que coroam cores, medos de ficar “sozinha lá fora”, trigais que pedem ceifa e colheitas que ruborizam, o concerto desemboca na devoção de Nossa Senhora das Dores, a quem a fadista oferece o peito e recebe, em troca, a divina sorte do fado, essa casa mestiça que junta, inteira e incandescente, a batida angolana e o fandango do Ribatejo, o corridinho do Algarve e o fado de Lisboa.
Mais de um ano separou a compra dos bilhetes da noite em que, finalmente, Ana Moura trouxe a Santa Maria da Feira o pulsar de “Casa Guilhermina”, e ainda assim nada me preparou verdadeiramente para a forma como o disco, tantas vezes escutado ao longo de milhares de quilómetros de estrada, se reinventou diante de mim, como se cada canção respirasse pela primeira vez. Rui Poço, André Moreira e Ricardo Danin, os músicos que acompanharam Ana Moura em palco, elevaram a fasquia com interpretações de rigor brilhante, tecendo uma base luminosa à voz da fadista que assim pôde ergue-la em toda a sua intensidade. As coreografias dos quatro bailarinos, embora visualmente elegantes, pouco acrescentaram à narrativa emocional que vinha, sobretudo, da artista, capaz de transformar cada tema num território íntimo de memória e revelação. E quando “Desfado” entrou, vindo de outra morada mas perfeitamente enquadrado numa casa que é como se fosse sua, cumpriu-se a ponte entre o passado e o presente, lembrando-nos essa ironia tão humana da “certeza de não estar certa de nada”. No final, as palmas - incessantes, ritmadas, absolutamente cúmplices - selaram uma noite em que “Casa Guilhermina” se afirmou não apenas como álbum, mas como lugar vivo, erguido por Ana Moura em cada gesto, em cada sílaba, em cada respiração.
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