“ (…) Do janelão continuam a assomar as longínquas torres. Na penumbra sente uma remota oração descer do alto, uma melopeia ensurdecida a deslizar pela sobriedade do silêncio. Ninguém repara nos arbustos hábeis onde deus se oculta. Já não se ouvem as trindades. Também elas debandaram temerosas do triste toque dos sinos e dos lilases não há vestígios. Na incisão que cobre o muro alguém deporá uma flor. Ensaia a profunda respiração, mas já não chega ao alto. Senta-se por instantes junto a um túmulo. Aguarda que algum prodígio se erga e salve os ramos secos onde o vento atrai o sossego.”
Maria Afonso
Patente na Casa dos Livros, depois uma estadia no Centro de Fotografia Georges Dussaud, em Bragança, a nova e muito aguardada exposição de Adelino Marques, “(d) A Espantosa Realidade das Coisas”, aprofunda a sua investigação da paisagem como acto de visão e espaço de revelação. Nas imagens que são as suas, a paisagem nunca é mero cenário, antes construção sensível, dependente de um olhar atento que selecciona, interpreta e devolve ao mundo o que nele se esconde. A fotografia funciona aqui como mediação: não pretende duplicar o real, mas iluminá-lo, expondo tensões, texturas e pequenas vibrações que o olhar apressado não apreende. O artista move-se nesse território onde o instante se abre à possibilidade de eternidade e onde o erro convive com a tentativa. Ao deter e reorganizar o olhar, Adelino Marques devolve à paisagem a sua força inaugural, essa capacidade de nos tocar profundamente e de insinuar que nunca vemos tudo, que algo permanece sempre à espera de ser revelado. Assim, horizontes parecem inclinar-se, o movimento fixa-se e a matéria fragmenta-se, criando paradoxos visuais que suspendem o mundo e incitam o visitante a interrogar o visível.
A experiência da exposição intensifica-se no interior da Casa dos Livros, onde a arquitectura e o silêncio do espaço preparam o visitante para uma relação mais íntima com a fotografia. Envoltas numa névoa deliberada, as imagens convocam um gesto de recolhimento, aproximando-se daquele respeito antigo que se tinha diante das pequenas alminhas à beira dos caminhos. Nelas vemos sombras de ermidas, fragmentos de flores campestres, vitrais que filtram uma luz pálida, aves que se erguem num voo decidido. Esses elementos não apelam à memória como arquivo, mas como respiração, algo que persiste no corpo antes de ganhar nome. Distribuída por cinco núcleos, a exposição apresenta variações de um mesmo impulso: transformar a paisagem em pensamento visual, em matéria sensível que une técnica e intuição. As pequenas derivas de densidade, contraste ou velocidade de obturação revelam não só o que está diante da câmara, mas também o que vibra por detrás: a nascente escondida entre pedras, o silêncio líquido de uma ponte antiga, o labor discreto das mãos que moldam casas e destinos. É nesse território íntimo que as imagens sugerem a sobrevivência de um sagrado difuso, mais respirado do que declarado.
No conjunto, a exposição oferece ao visitante a sensação de participar num exercício que entende a fotografia como montagem mental: cada imagem dialoga com a anterior e prepara a seguinte, gerando um fluxo de percepções mais do que uma narrativa linear. A amplitude desta mostra permite reconhecer a coerência profunda do trabalho de Adelino Marques, fundada numa vontade persistente de pensar a paisagem como experiência de consciência. Há, em muitas das séries, um movimento interior que conduz o olhar para zonas de suspensão, momentos em que a própria realidade parece hesitar entre aparecer e ocultar-se. Essa oscilação, trabalhada com rigor técnico e sensibilidade poética, afirma o gesto do artista: devolver ao mundo a capacidade de surpreender, relembrando-nos que o visível não é uma superfície estável, mas matéria em permanente metamorfose. As imagens exigem um tempo lento, quase meditativo. Pedem para ser lidas como quem lê um poema, acolhendo aquilo que tremeluz no intervalo entre o que sabemos e o que ainda não sabíamos ver. No fim, permanece a sensação de que a fotografia, ao invés de fixar o real, o reimagina, desse movimento nascendo a sua força.
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