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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

CONCERTO: Meredith Monk



CONCERTO: Meredith Monk
Com | Meredith Monk (voz e teclados), Katie Geissinger (voz), Allison Sniffin (voz, violino e teclados)
Auditório de Espinho – Academia
14 Out 2025 | ter | 21:30


““I still have my hands / I still have my mind / I still have my money / I still have my telefone / Hello, hello, hello?
I still have my memory / I still have my gold ring, / beautiful, I love it / I still have my allergies / I still have my philosophy.”
Meredith Monk, “The Tale”


Que extraordinário serão, o da passada terça-feira na companhia de Meredith Monk, uma artista que, aos 82 anos, permanece determinada em continuar a escavar a própria origem da voz e do som. Nascida num meio musical — a sua mãe era cantora profissional —, Meredith Monk sempre entendeu a voz como um instrumento ilimitado. A sua obra cresceu numa Nova Iorque fértil em experimentação artística, ao lado de figuras como Philip Glass ou Steve Reich, com quem partilhou o minimalismo como ponto de partida, mas que ultrapassou ao focar-se não tanto na repetição rítmica, antes na expressão corporal e vocal pura. Pioneira do que hoje se designa por “técnica vocal alargada” e “performance interdisciplinar”, as suas influências encontram-se tanto no Oriente como no Ocidente – do canto tibetano ao teatro Noh, da música medieval europeia às tradições indígenas —, não por uma fusão estilística, mas por um reconhecimento de que o som, antes de ser linguagem, é rito e respiração. Nela é claro esse impulso de regressar às fontes do som, explorando a voz como um território sagrado, íntimo e ilimitado, onde o tempo parece suspenso e o corpo é o primeiro instrumento da alma.

Atentemos nos primeiros momentos do concerto. Sozinha em palco, com as suas enormes tranças e um belo sorriso no rosto, começou por entoar “Wa-lie-ho”, um tema da maturidade apesar do seu meio século, abrindo-nos a imensidão do deserto do Novo México e a infinidade de sons que associamos às emoções, mais do que os sons que o próprio deserto nos devolve. O que à primeira escuta pode parecer uma música “simples”, revela-se, na verdade, como um refinado processo de despojamento, reduzindo a composição ao essencial, na busca de uma forma de pureza quase espiritual. Depurada ao máximo, esta, como todas as restantes peças que compuseram o concerto, não conta uma história no sentido narrativo convencional, antes convoca sensações, estados de alma, geografias interiores. A voz, esse enorme instrumento, é moldada com uma liberdade quase xamânica — como se Monk quisesse cantar antes das palavras, antes da gramática, antes mesmo da consciência de ser. Há algo de poeira e terra molhada, de vento nas montanhas, de infância da humanidade em cada composição. Cada emissão vocal, cada gesto ou respiração, convoca algo de profundo, atávico, como se estivéssemos a escutar a primeira tentativa de comunicação entre dois seres.

Primeiro com Katie Geissinger e depois com Allison Sniffin em palco, as músicas foram-se derramando não apenas em beleza ou emoção estética, mas também como experiência sensorial e espiritual total. Temas como “Gotham Lullaby”, “Scared Song”, “Simple Sorrow”, “Happy Woman” ou, já no “encore”, “The Tale”, são viagens imersivas onde corpo, som e silêncio se entrelaçam. Viagens que convidam a uma presença, não como espectadores passivos, mas como testemunhas de uma exploração da memória colectiva e corporal. Apesar de muitas das obras lidarem com temas como a transitoriedade e a fragilidade, a morte e o renascimento, há nelas, sempre, uma luz que brilha através da dor, uma aceitação radical da impermanência. E há, também, uma ética ecológica implícita: Em Meredith Monk, a comunhão com a natureza não é uma metáfora, mas uma vivência sensível, quase litúrgica. O canto torna-se ponte entre o humano e o mundo natural, um gesto de escuta e humildade. Por isso, escutar Monk é aceitar que a arte pode ser semente, oração e vestígio de civilizações esquecidas. A sua música não pertence a um tempo, antes ecoa em muitos tempos. Inclusive em tempos que estão para chegar.

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