À semelhança dos peões num jogo de xadrez, o povo é frequentemente subestimado nas estruturas de poder. No entanto, são essas peças aparentemente fracas que, com estratégia e perseverança, podem atravessar o tabuleiro e transformar-se em rainhas. Pequenos, descartáveis, lançados às feras nos mais variados contextos, são os peões que abrem o jogo, que protegem as demais peças e progridem até ao fim para alterarem o rumo da partida. No preto e branco quotidiano, talvez sejam percebidos como apenas mais um na multidão de peças empurradas pela vida. Mas não desistem do sonho de virem a cruzar o tabuleiro dos dias, vencendo as diagonais da injustiça e, quem sabe, chegando ao fim convictos de terem sido a chave de um glorioso xeque-mate. Garcia de Marina chama-lhes “inocentes”, faz deles o fulcro da sua fotografia e eleva-os à categoria de agentes decisivos nos mais variados contextos, do político ao social, do filosófico ao lúdico. “Inocentes”, que fazem título de uma exposição apresentada pela primeira vez em Portugal, uma série de enorme impacto, situada no domínio criativo da poesia visual.
O povo unido jamais será vencido. Inscrita de forma tão vincada no ideário da liberdade, a frase ocorre com inusitada frequência ante a força e o significado das imagens que vão desfilando ao olhar do visitante. Apresentada como um diálogo entre o observador e a imagem, “Inocentes” revela, através da fotografia, o labor criativo de Garcia de Marina, assente numa perspectiva conceptual e minimalista. A sua visão distingue-se pela busca do complexo numa simplicidade apenas aparente. Ao trazer para fora do contexto um objecto tão banal como o peão, o artista transpõe os limites da realidade e das convenções, criando imagens cuja natureza instigante, sentido crítico e humor refinado, provocam o espectador, forçando-o a exercitar a mente, a romper com os estereótipos e a descobrir novas ideias e sentidos. Despojados da sua essência, prontos para serem reinventados, os inocentes de Garcia de Marina assumem uma desassombrada irreverência, desafiando o óbvio, apontando novos caminhos e chamando a atenção para a força dos mais fracos.
O All About Photo chamou-lhe “poeta do prosaico”, o Humor Sapiens rendeu-se às suas “metáforas visuais” e o Photo Chismes quis saber “onde termina a fotografia e começa o próprio sujeito”. Nascido em Gijón, em 1975, Garcia de Marina emergiu de uma profunda transformação aos 35 anos, altura em que uma paixão adormecida pela fotografia cruzou as barreiras da intimidade e deu início a uma carreira brilhante. Em Avintes, no âmbito do Festival iNstantes de 2023, o fotógrafo trouxe-nos “A Halt to Survive (Pandemic Times)”, um olhar inteligente e acutilante sobre os tempos pandémicos e que teve uma oportuna reposição no Centro de Reabilitação do Norte, em Março deste ano. De regresso ao nosso país, o artista mostra no Centro Português de Fotografia aquela que é a sua série mais comprometida, repleta de narrativas e significados não imediatamente perceptíveis. Num tempo em que testemunhamos diariamente o intensificar dos conflitos armados, das desigualdades e das discriminações, “Inocentes” expressa a urgência de continuar a defender os valores da liberdade, da justiça e da paz.
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