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segunda-feira, 19 de maio de 2025

LIVRO: “Eu Canto e a Montanha Dança” | Irene Solà



LIVRO: “Eu Canto e a Montanha Dança”,
de Irene Solà
Texto original | “Canto jo i la muntanya balla”, © Irene Solà, 2019
Tradução | Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Ed. Cavalo de Ferro, Abril de 2024


“ (…) E então deixámos cair o segundo raio. Rápido como uma serpente. Zangado. Aberto como uma teia de aranha. Os raios avançam por onde querem, como a água e os aludes e os insectos pequenos e as garças, pois tudo o que é bonito e brilha enche o seu olhar. O canivete, fora do bolso do Domènec, brilhou como um tesouro, como uma pedra preciosa, como um punhado de moedas. O canivete de metal espelhou-nos, polido. Como uns braços abertos, como um chamamento. Os raios enfiam-se onde querem, e o segundo raio enfiou-se dentro da cabeça do Domènec. Para dentro, bem no fundo, até ao coração. E tudo o que via dentro dos olhos era negro, por causa da queimadura. O homem caiu a prumo sobre a erva, e o prado colocou a face contra a dele, e todas as nossas águas agitadas e contentes se enfiaram pelas mangas da camisa, por baixo do cinto, por dentro das ceroulas e das meias, à procura da pele ainda seca. E morreu. E a vaca foi-se embora espiritada, e o bezerro correu atrás dela (…)”.

Poetisa, romancista e artista visual catalã, Irene Solà venceu o Prémio da União Europeia de Literatura em 2020 com “Eu Canto e a Montanha Dança”, o seu segundo romance. Publicado pela Cavalo de Ferro, com tradução de Rita Custódio e Àlex Terradellas, o livro narra as alegrias e as desventuras de uma família de camponeses, tendo como vibrante pano de fundo a vasta cordilheira pirenaica onde vive. Com uma escrita límpida, um olhar compassivo e uma enorme intencionalidade emocional, a autora rende homenagem às forças da natureza e à relação do ser humano com um mundo desconhecido, misterioso e iminentemente espiritual. Entre o acto de nascer e o de morrer, as personagens de Irene Solà fundem-se com um entorno natural austero e impiedoso que as prende e maneja a seu bel-prazer, moldando o curso das suas vidas entre a fantasia e o desgosto. “Eu Canto e a Montanha Dança” ilustra na perfeição a importância de nos sabermos distanciar para melhor percebermos essas conexões e de que forma se transmitem e dão sentido às nossas vidas.

Quando um raio atinge e mata Domènec, a sua viúva, Sió, e os seus dois filhos, Hilari e Mia, mais não têm do que lamentar a sua morte e fazerem-se à vida. Anos mais tarde, quando Hilari morre num acidente de caça na floresta às mãos do seu melhor amigo, Jaume, Mia chora a perda do irmão, mas lamenta também a sua relação com Jaume, que não voltará a ver. Entre o humano e o divino, Irene Solà encoraja-nos a ver o mundo de diferentes perspectivas, convocando o olhar de inesperadas personagens a cada novo capítulo. A trama vai muito além das histórias narradas na primeira pessoa por Hilari, Mia e Jaume, abrindo um convite ao leitor a que observe os vários episódios do ponto de vista de uma tempestade, de um bando de bruxas ou da própria montanha, por exemplo. Não é menor o tempo dispensado a uns cogumelos do que às vidas humanas que se cruzam no livro. Nenhuma perspectiva reivindica mais atenção, pois todas são igualmente importantes, aqui residindo o grande valor do livro: Tão trágica é a morte de Hilari, como o terror do corço que busca escapar à mira do caçador.

O convite a que olhemos o mundo a partir da terra ou das alturas abre perspectivas diferentes e desafia a nossa concepção de espaço e de tempo. Num determinado momento do livro, a autora mostra uma série de esboços que retratam a deslocação da crosta terrestre ao longo de milhões de anos, para formar as montanhas onde a família de Domènec mora. A sobreposição de escalas de tempo drasticamente diferentes lembra-nos que as nossas vidas não são mais do que um simples ponto na linha do tempo. Com uma escrita simples, mas altamente eficaz, Irene Solà persiste em partir de uma única história e, tal como uma árvore que cresce e se desenvolve, fazer com que dela brotem “ramos” que a consubstanciam e reforçam. Percebermo-nos, enquanto seres humanos, como uma simples parte de um sistema complexo é a grande lição que se extrai do livro. E volto a Domènec e ao raio que se enfiou no seu corpo, matando-o. O reflexo da tempestade reenquadra um evento que causou sofrimento a esta pequena família. Da perspectiva da tempestade, porém, os danos foram quase nada.

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