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quarta-feira, 28 de maio de 2025

EXPOSIÇÃO: "Meninas Exemplares" | Paula Rego



EXPOSIÇÃO: “Meninas Exemplares”,
de Paula Rego
Curadoria | Catarina Alfaro
Museu Nacional Grão Vasco
15 Mar > 29 Jun 2025


“Ela ouve a voz dele [Rochester] a chamá-la e, no livro, ela corre logo para ele [...]. Mas ela devia ter algumas dúvidas, evidentemente. Porque, para ela, não é um negócio assim tão proveitoso. Mas ela acaba mesmo por ir ter com ele e, supostamente, esse é um final feliz. E até é. Mas aqui, eu faço-a duvidar.”
Paula Rego

Paula Rego (1935–2022) é uma das artistas portuguesas contemporâneas mais conhecidas. Residiu e trabalhou em Londres, cidade onde estudou pintura, na Slade School of Fine Art, entre 1952 e 1956. Ao longo do seu percurso artístico, com mais de seis décadas, pintou para contar e foi, ao mesmo tempo, personagem e narradora de histórias. Na sua livre interpretação de diversas narrativas, Paula Rego reinscreveu a voz das mulheres no seu próprio tempo. Nesse seu contar pela pintura ou pela gravura assistimos sempre a um processo de questionamento, mas também de revelação crua e, muitas vezes, brutal da natureza humana e das relações que os humanos estabelecem entre si, sejam elas familiares, amorosas ou políticas. A sua obra, multifacetada, não conhece limitações, não se cinge ao domínio das artes visuais, cruzando-se com outras manifestações artísticas como a literatura ou a poesia. Estes territórios privilegiados das histórias que inspiraram a artista, confrontam-se numa exposição cujo título remete para o texto literário “Meninas Exemplares”, da Condessa de Ségur, que mereceu a atenção de Paula Rego desde a sua infância. As brincadeiras da infância, o lado perverso, cruel e brutal das crianças, são igualmente explorados poeticamente por Adília Lopes, que em junho de 2000 convida Paula Rego a criar imagens para um livro que iria reunir toda a sua obra e das quais podemos apreciar um breve conjunto, acompanhados de alguns textos da poetisa.

Também as litografias coloridas de Paula Rego da série “Jane Eyre” resultam de uma apropriação transformadora do romance vitoriano da escritora Charlotte Brontë e destacam o sofrimento, a determinação e o caráter independente da sua protagonista. Inspiradas no romance vitoriano de Charlotte Brontë, publicado em Inglaterra em 1847, a artista deixa-se seduzir pelo carácter fascinante da sua protagonista, Jane Eyre, e sobretudo pelo modo como questiona as expectativas sociais sufocantes que pendiam, à época, sobre as mulheres, e as suas estratégias de fuga através da leitura, recurso que lhe possibilita uma vida interior, um escape ao pesadelo da realidade familiar, criando um mundo imaginário, menos cruel e mais próximo da natureza. Jane Eyre é sobretudo a história de um amor triunfante, entre a protagonista e o Sr. Rochester, apesar de todas as crueldades e obstáculos que se atravessam no seu caminho. Paula Rego faz também sobressair nas suas imagens um outro lado da história, que não é contada. A última litografia desta série, “Vem a mim”, é decisiva para o tratamento caracterial psicológico de Jane, sugerindo a sua complexidade, a sua hesitação em aceitar um destino que será sempre, de certo modo, sacrificial, como o céu tingido de vermelho sugere.

Exemplares são também as meninas e mulheres que dão face à prática escondida do aborto, na sua série de oito águas-fortes. Identificando-se cada uma delas com as pinturas a pastel realizadas em 1998, resultam diretamente das experiências traumáticas de Paula Rego mas também de um sentimento de indignação perante a indiferença dos portugueses, traduzida em abstenção, no referendo realizado em 28 de Junho desse mesmo ano sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. As águas-fortes e os pastéis apresentam correspondências evidentes na composição e retratam de forma vívida o sofrimento de jovens mulheres que praticam o aborto numa clandestinidade imposta pela proibição legal, deitadas em macas, rodeadas de baldes e trapos, num ambiente improvisado de domesticidade e solidão. São mulheres que, apesar da dor e da humilhação, mantêm a sua dignidade. Nestas águas-fortes, Paula Rego recriou formas de expressão gráfica tão directas como as do próprio desenho que originou os pastéis, redireccionando o foco de tensão das suas composições para a presença física e o carácter emocional das mulheres que dão a face à prática escondida do aborto. Foi o sofrimento físico e psicológico da artista que ditou a vontade de intervir diretamente sobre a mudança da legislação em Portugal, utilizando a sua obra como um instrumento de propaganda ao qual é impossível não prestar atenção.

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