Páginas

quinta-feira, 29 de maio de 2025

LIVRO: "O País dos Outros" | Leïla Slimani



LIVRO: “O País dos Outros”,
de Leïla Slimani
Título original | “Le Pays des Autres” (© Éditions Gallimard, 2020)
Tradução | Tânia Ganho
Ed. Alfaguara, Maio de 2021 (6.ª reimpressão, Janeiro de 2024)


“Chegaram ao carro e atiraram-se para o interior. Aïcha começou a chorar. Reclamava o colo da mãe, perguntou se o irmão ia morrer e Amine e Mathilde, em coro, mandaram-na calar-se. A turba alcançara-os e Amine não pôde fazer marcha-atrás. Os rostos enraiveceram-se contra os vidros. O queixo de um rapaz deixou na janela um longo rasto gorduroso. Olhos desconhecidos inspeccionavam aquela estranha família, aquela criança que tinham dificuldade em distinguir a que campo pertencia. Um rapaz desatou aos gritos, de braço esticado para o céu, e a multidão inflamou-se. Não tinha mais de quinze anos e deixara crescer uma barbinha de adolescente. A voz grave e carregada de ódio chocava com a doçura do olhar. Aïcha fixou-o e soube que aquele rosto lhe ficaria para sempre gravado na memória.”

Depois de “Canção Doce” e “No Jardim do Ogre”, Leïla Slimani muda radicalmente de registo com “O País dos Outros”. Obra inaugural de uma trilogia que abraça a história da família Belhaj, de 1944 em diante, o livro é também um retrato de Marrocos sob dominação francesa e das tensões nacionalistas que levaram à independência em 1956. “O País dos Outros” narra a história de Mathilde, uma jovem alsaciana que se apaixona por um marroquino, Amine Belhaj, combatente do exército francês durante a segunda Guerra Mundial. Terminado o conflito, o casal estabelece-se em Meknès, nuns terrenos isolados deixados em herança a Amine. Transformar uma terra árida e inóspita numa fértil e produtiva quinta ocupará o homem anos a fio, desviando as suas atenções das mudanças que estão a ocorrer na sociedade marroquina, mas sobretudo dentro da sua própria casa, com Mathilde confrontada com um brutal choque de culturas e dividida entre as obrigações familiares e a necessidade de preservar a sua independência.

Com o subtítulo “A guerra, a guerra, a guerra”, este primeiro volume permite a Leila Slimani fazer um ponto da situação das suas personagens, bem como dos principais temas a abordar no romance e, certamente, ao longo da trilogia. Numa visão intimista e impressionista, a autora privilegia as personagens em detrimento dos acontecimentos, embora a situação política do país, na viragem da década de 1940, se faça presente, contextualizando a sociedade e a forma como são condicionadas as acções dos protagonistas. No retrato que faz de Mathilde, mais apurado à medida que o romance avança, Leïla Slimani tem o cuidado de evitar arquétipos e caricaturas, mostrando um carácter intrinsecamente rebelde que se vai deixando tomar por uma série de sentimentos mistos e contraditórios e se vê obrigado a fazer opções. O mesmo se verifica com as personagens de Aïcha, a sua filha, e Selma, a cunhada, divididas nos seus desejos e interesses, entre a castradoras convenções sociais e o sonho de liberdade.

A personagem de Mathilde é a grande responsável pela textura romanesca do livro, mas a ausência de profundidade no tratamento dado pela autora deixa no leitor uma nota de frustração. O mesmo acontece com os numerosos “papéis” secundários, como o de Omar, cunhado de Mathilde, envolvido na luta pela independência de Marrocos e que gostaríamos de poder acompanhar mais de perto. O lugar da mulher na sociedade marroquina, a marcha rumo à independência, o crescimento da família, o vínculo com o país ocupante, tudo isso surge no livro, mas sem profundidade real. À medida que se avança na leitura, mais a frustração toma conta de nós. Há passagens realmente bem escritas, sobretudo na parte inicial do livro, mas lutar contra a vontade de pôr de parte a leitura e levá-lo até ao fim exigiu um esforço quase hercúleo. Perder o fio à meada é a nota dominante, enchendo de tédio momentos que deveriam ser prazerosa. Resta a esperança de que os restantes volumes da trilogia possam trazer à saga o que “O País dos Outros” apenas esboçou.

Sem comentários:

Enviar um comentário