CONCERTO: “Variações do Brancø”,
de Filipe Raposo
Teatro Viriato
23 Mai 2025 | sex | 21:00
“Precisamos para começar de um ponto de partida:
Costa ou paisagem, porto ou acontecimento, navegação ou relato.
O lugar donde partimos importa menos que aquele aonde chegamos.
Porque ora todos os mares parecem formar um só,
sobretudo quando é longa a viagem,
Ora cada um deles nos parece ser outro mar.”
Predrag Matvejevitch, in Breviário Mediterrânico
Terceiro volume da “Trilogia das Cores”, projecto do pianista, compositor e orquestrador Filipe Raposo, “Variações do Brancø” acaba de ver a luz do dia e o lançamento ao vivo teve lugar na noite da passada sexta-feira, em Viseu. Reflexão artística sobre a influência da cor ao longo da História, a “trilogia” teve o seu início com o vermelho (“Øcre” vol. 1, 2019), prosseguiu com o preto (“Øbsidiana vol. 2, 2022) e conclui-se agora com o branco (“Variações do Brancø” vol. 3, 2025). Para Filipe Raposo, “as cores surgem como chave do processo criativo, que, ao evocar o próprio nascimento da arte, se encontram presentes nas pinturas e gravuras rupestres, e ganham uma dimensão metafórica e simbólica na mitologia clássica”. Neste trabalho em particular, o branco evoca paisagens alvas, distâncias monótonas, vastas planícies geladas ou desertos de areias claras. Simbolicamente, representa o renascimento, a simplicidade e a restauração. Tanto pode ser luto e resiliência, tal como é entendido nalgumas culturas orientais, como a cor da página em branco que se abre à criatividade e à imaginação.
À semelhança dos volumes anteriores, “Variações do Brancø” é uma viagem, com a carga simbólica que tal desígnio carrega em si. Depois do “negro mais negro” da obsidiana, o branco representa um caminhar em direcção a sul, ao encontro da grande bacia mediterrânica e da sua cultura milenar. Tema de abertura do concerto, “A Idade do Pão” evocou um alimento presente em todas as geografias e que é tido como um símbolo de hospitalidade e partilha. A mesma hospitalidade e partilha gerada entre o artista que, numa sala de espectáculos, tem para oferecer o fruto do seu trabalho, recebendo do público atenção e aplauso. “Entre a cal e o sul” trouxe-nos esse elemento tectónico que, saído do interior da terra, embeleza e protege os espaços que habitamos. O elemento solsticial abriu-se em “Manhãs de S. João”, dividido entre o dia e a noite, a ordem e o caos, a luz e as trevas. “Da minha janela vejo o grande sul” foi um abraço a um sul latino e católico, que bebe vinho e é pobre, deixando para traz um norte germânico e protestante, amigo da cerveja e que é rico.
Simbólica, a lista vai-se afirmando ao longo da viagem: o branco-cal, o branco-pão, o branco-gelo, o branco-linho, o branco luz, ou a noite branca. Com “Búzios mudos, maus agouros”, foi de “sinistros prenúncios de um crime da humanidade contra si mesma” que nos falou uma música feita dos silêncios e dos “sibilinos murmúrios” que neles se insinuam. “Crepúsculo da tarde” foi errância e efemeridade da vida, fim de um ciclo, despedida. Já “Fiadas”, com a sua roca e o seu fuso, simbolizou a mulher e foi bem-estar futuro, abundância e mesmo fecundidade. “Noite branca”, enfim, foi a lua que surge no céu e que ilumina todos os homens - os de hoje e os de outrora. O sentido do trabalho de Filipe Raposo, a sua intencionalidade, as palavras que evoca, a sua qualidade discursiva, vão muito além da música que podemos escutar. Mostra-nos esse sul tão nosso, tão afectuoso e tranquilo, quanto arrebatado e exaltado. “Suão” colocou um ponto final no alinhamento, dizendo, como Mahmoud Darwish, que “os ventos mudam contra nós”. Um abraço à Palestina e ao seu povo, a coroar um concerto inesquecível.
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