LIVRO: “Casa e Logradouro”,
de Aurelino Costa
Ed. Porto Editora, Fevereiro de 2023 (reimpresso em Junho de 2023)
“Só na tua mão, mãe,
principia o sinal
coberto pelo teu beijo.”
Mergulhar em “Casa e Logradouro” é – usando uma expressão por certo grata a Aurelino Costa – “pôr a mão na massa”. É penetrar no ambiente mágico de uma “carpintaria fitada em caracóis” e ver os “desejos transparentes no focinho do gado”. É “urinar contra o vento num circuito agudo de cheiro a mosto” e perceber “o inesperado, a graça na mão dos pobres”. É sentir o ondular do rio “nesta manhã de Novembro líquido” e orar “pelas almas do purgatório especialmente as mais abandonadas”… Composto por quarenta e quatro poemas que tocam as cordas da alma, “Casa e Logradouro” é uma viagem íntima aos lugares da memória, feita de serenidade e sobressalto, inquietação e júbilo. Com firmeza, o poeta conduz-nos através de uma paisagem orgânica, inteira, despojada, visceral, húmus de palavras com sabor a terra e a mar, de cheiros entardecidos e marés incendiadas. Convida a que a ela nos entreguemos, aconchegados no calor da dádiva, seguros da partilha como o bem mais precioso de um caminho que ainda agora aprendemos a trilhar.
Depois de “Pitões das Júnias” e “Amónio”, volto a Aurelino Costa e a uma poesia intensa e viva, que não dispensa o humor e a ironia. Que ama por igual o tosco e o delicado, o frágil e o bruto. Que vive e sente com uma simplicidade desconcertante e que oferece imagens tão belas como “o sol [que] avermelha a lua”, “o silêncio de que falam os teus olhos” ou “a fartura dos versos que das árvores pendiam como brasas”. Feitos de seda gumosa, os bichos da seda trazem com eles o mistério e o medo. A noite “agoniza os sonhos e trepa uivos de sombras pelas paredes”. Num tempo amalgamado, há cântaros e lamparinas de azeite, bonecos de madeira a decorar o Presépio, a palha do colchão, o toque do sino, nabos talhados a foice, a água que pinga de um ralo, uma nuvem aberta em lume brando, o forno do pão lacrado a bosta, uma flor que se bebe em tigela de tinto. Parece pouco este cão de língua de fora e duas balas no carregador de um revólver talvez já sejam demais. “Antes de falecer, a imortalidade é um gozo em minúcia e pária entre o que há-de vir e a estreita lucidez da morte. Uma bolometria esférica.”
Entre a casa e o logradouro, entre o sagrado e o profano, assim se move Aurelino Costa. Mas nem só do que vê e sente, daquilo que nele são recordações, vive a sua poesia. “Na ossatura desmesurada de um cansaço” leva-nos ao encontro da “miséria da escrita”, do esforço hercúleo, da impotência: “Escancarado ante a displicência da ignorância congénita à idade [o escritor] vai-se debruçado aqui e acolá olhando as couves do quintal”. As referências a personalidades do mundo da Literatura, da Música ou da Filosofia atravessam as páginas do livro: Carlos Paredes, Luis de Freitas Branco e Álvaro Cassuto, Paul Celan e Narciso Yepes, Franz Kafka, uma “fuga” de Bach, a paradoxia de Confucio. E ainda Eugénio, mais Lisboa do que Andrade, pois gatos não há no poema. Apesar da nostalgia que se adivinha nas camadas exteriores dos poemas, é no seu interior, musgoso e húmido, que encontramos uma realidade as mais das vezes crua e magoada. Mas é nesse lugar de encontro que apetece estar. “[A]té que o 33 desça da cruz e [n]os corra a todos”.
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