CONCERTO: Daniel Rowland e Camerata OCE
FIME - 50º Festival Internacional de Música de Espinho
Auditório de Espinho - Academia
21 Jun 2024 | sex | 22:00
Considerado um dos Festivais de referência do género em Portugal, o FIME - Festival Internacional de Música de Espinho é um dos primeiros festivais de música clássica em Portugal, tendo realizado a sua primeira edição em 1964. Ao longo dos anos, o Festival consolidou uma programação em que a música erudita e o jazz se combinam, cruzando públicos e diversificando a oferta, apresentando concertos a solo, em música de câmara, ensembles diversos e orquestras, abrangendo desde a música barroca à contemporânea, sempre com uma forte aposta em repertórios de excepção e projectos artísticos de projecção internacional. Desta programação diversificada, imaginativa e transversal em termos de estilos e épocas, permito-me recordar, nos anos mais recentes, os concertos marcantes do Drumming GP & FIME Ensemble (com a interpretação da peça “Steve Reich: Music For 18 Musicais”), “Jan Garbarek ft Trilok Gurtu”, “Belmondo Quintet & Orquestra Clássica de Espinho”, “Vijay Iyer & Orquestra de Jazz de Espinho”, Michael Wollny Trio ou Kronos Quartet, entre muitos outros.
A abrir a segunda semana da sua edição número 50, em Dia Europeu da Música, a proposta do Festival Internacional de Música de Espinho não poderia ser mais aliciante. Com a Camerata OCE, no violino e direcção musical, Daniel Rowland justificou plenamente o interesse despertado e que esgotou a lotação do Auditório. Intérprete “versátil, carismático e aventureiro”, com um vasto repertório apresentado, Rowland pôs em palco o seu enorme engenho, intensidade e sentido dramático, fazendo do concerto um tempo de harmonia, energia e júbilo. A Sonata n.º 12, em Ré menor “La Folia” RV 63, de Antonio Vivaldi, a abrir o programa, foi disso um extraordinário exemplo. Dança renascentista ibérica, a “folia” serviu de veículo às fantasias e extravagâncias do Barroco, sendo Vivaldi um nome incontornável deste período e um dos compositores que mais acrescentou à sua variedade estilística. A sequência de mini-movimentos, alternando passagens rápidas e lentas, foi escrita para realçar o virtuosismo dos executantes, e os cinco músicos em palco fizeram jus à complexidade e beleza desta “loucura”, oferecendo dez minutos de grande qualidade que abriram espaço para os dois momentos seguintes.
“A piece to peace”, assim nomeada por Daniel Rowland, “Tenebrae”, do compositor argentino Osvaldo Golijov, preencheu o segundo momento do concerto, nela sendo perceptíveis referências ao canto litúrgico judaico, às melodias klezmer e ao nuevo tango de Astor Piazzolla. Acerca da peça, disse o músico ser “consequência de ter testemunhado duas realidades contrastantes num curto espaço de tempo, em setembro de 2000. Estava em Israel no início da nova vaga de violência que ainda hoje se mantém e, uma semana depois, levei o meu filho ao novo planetário de Nova Iorque, onde pudemos ver a Terra como um belo ponto azul no espaço. Queria escrever uma peça que pudesse ser ouvida de diferentes perspectivas. Isto é, se alguém escolher ouvi-la ‘de longe’, a música provavelmente ofereceria uma superfície ‘bonita’, mas, de uma distância metaforicamente mais próxima, poder-se-ia ouvir que, sob essa superfície, a música está cheia de sofrimento.” Foi este sentimento, num misto de leveza e dor, que Daniel Rowland e a Camerata OCE interpretaram magistralmente, oferecendo uma leitura lenta e silenciosa de uma peça que exprime a essência da própria Humanidade.
Juntando passado e presente, “Vivaldi - The Four Seasons Recomposed”, de Max Richter, foi “a cereja no topo do bolo”, fechando da melhor forma uma noite memorável. A peça principia com o brilho de algo estranho e suave, uma névoa ambiente de cordas que é simultaneamente eletrónica e acústica. Depois, algo estranho acontece. Destas marés sónicas inconstantes, surge um conjunto de violinos - tocando fragmentos do concerto mais conhecido do mundo, a banda sonora de mil anúncios publicitários, o tema favorito do telefone em espera que “massacra” o nosso dia a dia. Sim, são as “Quatro Estações”, mas não como as conhecemos. Mantendo o espírito e muitos elementos da composição original, Max Richter recompô-la, estilizando as formas e a linguagem, misturando “Vivaldi puro” com passagens que parecem devedoras do minimalismo ou da música techno. Não é tempo de nos interrogarmos sobre o porquê de retocar, retrabalhar e reimaginar a obra-prima pictórica eterna de Vivaldi. Entreguemos-nos, simplesmente, à música, redescobrindo-a e redescobrindo-nos a nós próprios. Talvez assim aceitemos melhor o desconcerto de termos no alarme de um telemóvel entre a assistência o final “perfeito” de uma peça aberta à modernidade.
[Foto: FIME Espinho | https://www.facebook.com/fimespinho]
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