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domingo, 3 de março de 2024

LIVRO: "A Vida na Selva"



LIVRO: “A Vida na Selva”,
de Álvaro Laborinho Lúcio
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2024


“O Velho veste-se de agora. Olha para mim. Cresceu-lhe a barba. Tem cabelo farto, negro e grisalho. Fuma cigarros atrás de cigarros. Trocou de nome. Chama-se Luís. É ele o amigo. Junta-se a aldeia. Todos querem vê-lo. Todos querem ouvi-lo. Todos sabem que quem voa para dentro nunca morre. É dentro que nasce e mora o infinito que habita o humano, e o humano é o eterno em figura de gente.”

Perdeu a camioneta de regresso a casa. Estava no primeiro ano do Liceu e tinha pela frente duas horas de espera e uma redacção de português para o dia seguinte. Nunca dedicara tanto tempo a escrever. Quando acabou, percebeu que tinha completado uma pequena obra-prima. Chamou-lhe “A Vida na Selva”. Com ela, no dia seguinte, escutando a avaliação em tom de crítica da professora, “a adorável D.ª Maria”, nasceu mais um bocado. Falo de Álvaro Laborinho Lúcio e do seu mais recente livro, “A Vida na Selva”, conjunto de crónicas recuperadas “do baú das coisas já escritas”, às quais o autor acrescentou matéria nova, dando-lhes “outra vida, uma identidade própria, mais chegada a este tempo.” Eis, pois, perante nós, um livro que pode ser entendido como uma espécie de testamento, “testemunho de um homem comprometido com as suas paixões e o diálogo com os outros”, resumo de uma vida em contacto íntimo com a palavra.

De nascer e de morrer nos fala este livro precioso - o primeiro grande livro de 2024. Que se abre num prefácio, todo ele espelho de um homem íntegro, firme nas suas convicções, comprometido com o livre pensamento. Um defensor acérrimo da ética, que renega “espreitadelas” e desconfia da “tolerância”. Um humanista, que recusa apear-se cedo de mais e teima em prosseguir rumo à utopia. Prefácio escrito por quem confessa não gostar de prefácios. Prefácio que me prendeu pela sua clarividência e verdade, me obrigou a lê-lo e relê-lo, se mostra uma peça fundamental do pensamento do seu autor e se oferece como uma ferramenta que nos ajuda a melhor ver o que se passa à nossa volta. Que nos alerta e, ao mesmo tempo, nos anima à esperança. Prefácio que vale, por si só, a leitura deste livro, podendo ver-se em cada uma das crónicas que se seguem um extraordinário bónus, fascinantes pelo que convocam, enriquecedoras pelo que transmitem.

Repartido em quatro “tempos” - nascer, voar, lutar, partir -, o livro convoca histórias e reflexões que, sendo do autor, têm um cunho de universalidade que tocam o leitor e o levam a encontrar-se nelas. Estão neste caso as crónicas dedicadas ao tempo pandémico, tempo em que um vírus terrível depositou sobre o mundo “um manto de disfarce”. Tal como o autor, regresso à “correntena” e vejo-me preso a um quarto, “escutando notícias na esperança de notícias”. E, tal como ele, sigo com Camus até Orão à procura de sinais ou guardo na memória esse homem de “cabelo farto, negro e grisalho” chamado Luís, gaivotas no olhar e a certeza de que “só voa quem se atreve a fazê-lo”. Da justiça de Fafe aos silêncios de uma fala, de um Pinóquio trajando “à Sporting” a Natália [Correia] e os juízes, passando pela literatura, pelo teatro ou pelas artes plásticas, são dezanove os textos (mais um prefácio e um posfácio) que nos prendem e inquietam, nos comovem e fazem sorrir. Um livro essencial, de um dos grandes pensadores do nosso tempo.

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