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segunda-feira, 4 de março de 2024

CONCERTO: "City of Glass"



CONCERTO: “City of Glass”,
Daniel Bernardes Trio & Coro Ricercare
Piano e composição musical | Daniel Bernardes
Direcção musical | Pedro Moreira
Auditório de Espinho - Academia
02 Mar 2024 | sab | 21:30


Depois de ter apresentado no Auditório de Espinho o extraordinário “Vignette”, em Janeiro do ano passado, o pianista e compositor Daniel Bernardes regressou a um palco que conhece bem para a estreia de “City of Glass”, o seu mais recente trabalho. Inspirado no primeiro volume da “Trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster, “City of Glass” retira do universo coral e do jazz a sua essência musical, ao mesmo tempo que cruza várias formas de expressão artística, da literatura ao cinema, do teatro à fotografia. Em palco, ao lado de Bernardes, estiveram o contrabaixista António Quintino e o baterista Mário Costa, e também o Coro Ricercare, com direcção coral de Pedro Teixeira e direcção musical de Pedro Moreira. A pontuar os vários andamentos da peça, ao longo do concerto, foram sendo projectadas na tela fotografias da “cidade de vidro”, da autoria de Beatriz Candeias Rato e Roberto Correia. Fortemente intimista, o momento ficou marcado por esta interdisciplinaridade, por esta comunhão de esforços, numa viagem sonora ao encontro do universo literário de Auster e das emoções que dele se desprendem.

Confesso que não tenho uma especial apetência pelo género policial e os seus grandes cultores têm-me passado ao lado. Mas se tenho os livros de Paul Auster na conta de ilustres desconhecidos, o mesmo não acontece com o Cinema por si escrito e/ou realizado, nomeadamente o incontornável “Fumo”, de Wayne Wang. Sem muito a que me agarrar, recuperei desse filme as figuras solitárias de Harvey Keitel a abrir a sua tabacaria, a trazer para a rua a máquina fotográfica em cima do tripé e a dispará-la exactamente à mesma hora, dia após dia, ano após ano, e de William Hurt, escritor obsessivo, mergulhado num quarto de hotel onde o fumo é, em si mesmo, uma personagem. Foi este sentido de deriva, de incomunicabilidade, de tragédia iminente, numa cidade apartada dos valores da solidariedade e da humanidade, que serviu de âncora e de pessoal fio condutor a uma narrativa em doze andamentos, próximos entre si de um ponto de vista melódico, mas suficientemente autónomos para darem a perceber as emoções que abrigam debaixo da pele.

Interrogo-me sobre a importância de se conhecer o livro para uma melhor identificação com a peça musical. Cada leitor interpreta as obras à sua maneira e a representação musical de uma passagem pode significar muito para uns e nada dizer a outros. Seguramente não foi esta ideia de “ilustração” que esteve na base da peça, o que me leva a pôr em causa a opção pela projecção de imagens, elementos redutores num processo onde importa mais o que é sugerido e menos o que é mostrado. Procurando afastar-me daquilo que considero um elemento de distracção e centrando-me em exclusivo na música, direi que funciona como um espelho de emoções onde coabitam a inocência e a simplicidade, a surpresa e a comoção, a tranquilidade e o arrebatamento. É uma música que toca e emociona, que se eleva em exaltação nas vozes harmoniosas do coro ou se encerra de forma introspectiva nas notas do piano, num toque subtil do contrabaixo ou da bateria, na delicadeza de um solo de Pedro Teixeira ou de Isabel Cruz. Gostaria de poder escutar esta peça sem o coro, mas isso são outros “quinhentos”.

[Foto: Auditório de Espinho - Academia | https://www.facebook.com/auditoriodeespinhoacademia]

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