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terça-feira, 5 de março de 2024

CINEMA: "Eu Capitão"



CINEMA: “Eu Capitão” / “Io Capitano”
Realização | Matteo Garrone
Argumento | Matteo Garrone, Massimo Ceccherini, Massimo Gaudioso, Andrea Tagliaferri
Fotografia | Paolo Carnera
Montagem | Marco Spoletini
Interpretação | Seydou Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo, Hichem Yacoubi, Doudou Sagna, Ndeye Khady Sy, Venus Gueye, Oumar Diaw, Joe Lassana, Mamadou Sani, Bamar Kane, Beatrice Gnonko, Flaure B. B. Kabore, Affif Ben Badra, Jackie Zappa, Abdellah Elbkiri
Produção | Paolo Del Brocco, Matteo Garrone
Itália, Bélgica, França | 2023 | Drama | 121 Minutos | Maiores de 12 Anos
UCI Arrábida 20 - Sala 3
03 Mar 2024 | dom | 16:05


Leão de Prata para Melhor Realização e Prémio Marcello Mastroianni para Melhor Jovem Actor (Seydou Sarr) da 80.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza, “Eu Capitão”, do realizador italiano Matteo Garrone, narra o calvário dos migrantes através do continente africano, rumo a uma Europa transformada em terra de todos os sonhos e promessas. Esta é a história de dois primos, Seydou e Moussa, que resolvem deixar para trás o Senegal e partir em busca de um futuro melhor para si próprios na margem de lá do Mediterrâneo. Longo, repleto de obstáculos, de dor e de sofrimento, o caminho congrega o drama de milhares de migrantes, cativos desde a primeira hora de oportunistas e agiotas, vítimas de extorsão e maus tratos nas fronteiras com o Mali ou o Níger, sujeitos ao abandono no meio do deserto do Sahara, encarcerados nas prisões da Líbia e alvo de trabalho escravo. A tudo isto sobrevivem os dois rapazes, obrigados a uma dura etapa final, a perigosa travessia do Mediterrâneo num barco precário, sem guia e sem certezas, rumo à costa da Sicília.

Odisseia contemporânea de dois jovens migrantes com destino à Europa, “Eu Capitão” é paradigmático do cinema de Garrone. Misto de documentário e de ficção, o filme centra-se na forte intenção de atestar a verdade desta chaga aberta na humanidade, tal como acontecia com o drama social de “Gomorra” ou a marginalidade de “Dogman”. Colado às personagens, o realizador acompanha-as nos seus movimentos mais imperceptíveis, não vacilando perante a violência e a crueldade. Componente importante do cinema de Garrone, o sangue, a pele lacerada, os corpos torturados, têm a realidade como foco principal, paradoxalmente aliada ao elemento do conto de fadas. As forças contrastantes são uma importante marca do filme, seja numa habitação miserável de um bairro de lata de Dakar onde as mulheres e as crianças se fantasiam de forma esplendorosa ou na beleza irreal do deserto tornado palco de dor e sofrimento, na mulher que soçobra face à dureza da travessia e flutua a caminho da terra sonhada ou na amizade de Seydou com outro migrante no meio de uma jornada infinitamente triste e dolorosa.

Com “Eu Capitão”, Matteo Garrone cria um libelo de denúncia intenso e revelador, refractário à retórica fácil e aos falsos moralismos. O filme destaca, com perturbadora clareza, o abuso e o assédio que homens e mulheres, crianças e idosos, sofrem por parte das organizações criminosas que administram aquilo que constitui um verdadeiro negócio de migração. O que emerge é a atitude dominadora e prepotente que desumaniza os migrantes e os transforma em moeda de troca, torturando-os e escravizando-os por dinheiro ou por razões fúteis. Com tudo isto, o sonho de Seydou e Moussa transforma-se num pesadelo, mitigado apenas pelo exemplo de coragem e solidariedade por parte daqueles que se encontram na mesma situação e pela sua inquebrantável vontade de viver. Ainda que o não saibam, a chegada à Europa não representa o fim dos problemas dos dois rapazes, mas é justamente a sua inocência de espírito que Garrone consegue captar tão bem, deixando em aberto uma réstia de esperança na humanidade.

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