EXPOSIÇÃO: “Calor”,
de André Romão
Curadoria | Inês Grosso
Museu de Arte Contemporânea de Serralves
17 Nov 2023 > 02 Jun 2024
Uma raposa aconchegada num sono profundo. Um antigo tronco de glicínia torcido do qual emergem mãos de bronze. Uma cadeira que lembra um louva-a-deus ostentando uma cabeça parcialmente coberta por corais marinhos. Uma perna humana iluminada por lâmpadas. Uma escultura de acrílico transparente com o exterior revestido de vaselina, escorrendo como um corpo que transpira e irradia vitalidade. Assim é “Calor”, conjunto de obras de André Romão representativas de um ambiente inquietante, feérico e onírico, situado algures entre o céu e a terra, entre o mundo dos vivos e o desconhecido. A partir de uma prática que inclui uma pesquisa pseudo-arqueológica de apropriação de objectos e uma pilhagem ética de formas passadas em objectos presentes, Romão retoma os temas fundamentais da sua investigação, que abarca conceitos de hibridização e metamorfose e reforça uma noção de fluidez e horizontalidade entre natural e artificial, orgânico e anorgânico, humano e animal ou humano e maquinal.
Nas paredes, uma coleção de cartazes antigos provenientes de diferentes países introduzem um elemento disruptivo que contribui para desestabilizar algo que sentimos não ser logicamente firme. Originalmente desenhados como instrumentos de sensibilização e incentivo à participação, os cartazes denotam modelos de preconceito e exclusão, recorrendo muitas vezes a apelos emocionais associados a ideias de patriotismo e dever cívico. Isto não seria problemático se esta idealização do dador não correspondesse a políticas violentas de discriminação assentes em estereótipos como o da “qualidade do sangue”, e não em critérios médicos e científicos adequados. Assim enquadrada, a doação de sangue é um ato de altruísmo sujeito a várias regulamentações que reforçam a discriminação e a segregação. Neste ponto, é inevitável lembrar que em diversos países, incluindo Portugal, só muito recentemente foi proibida a discriminação de doadores de sangue com base na orientação sexual ou identidade de género.
Pontuando e expandindo uma relação íntima com a natureza, as esculturas dispostas sobre plintos de madeira apresentam uma ampla variedade de formas de vida em distintos ambientes e nichos ecológicos. Combinam elementos da flora, fauna, seres humanos e elementos mecânicos e representam corpos simultaneamente estranhos e familiares que habitam um terreno de ambiguidade e indiscernibilidade de género. Este é um esforço que nos faz entrever a forma de um mundo mais justo e equitativo no qual se reconhece a igualdade entre as espécies. O artista abre caminho para novas perspectivas e níveis de consciência na nossa relação com o Outro, aquele que é diferente, que habita o mundo de maneira distinta. Na sua poesia e estranha melancolia, as esculturas de Romão assumem uma forma de resistência às categorias rígidas e binárias de identidade e comportamento. Ao mesmo tempo, celebram a diversidade e a complexidade das relações entre os seres vivos, questionando a ideia de que existe uma única forma correcta de ser e agir.
[Texto extraído do Roteiro da Exposição, da autoria de Inês Grosso, e que pode ser lido em https://cdn.bndlyr.com/nsa343pdfl/_assets/2311_andreromao_roteiro_site.pdf]
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