LIVRO: “O Quarto Rosa”,
de Francisca Camelo
Coordenação | Maria Bochicchio, Nuno Brito
Ed. Editora Exclamação, Agosto de 2019
“hoje reparei que a tira magenta
da embalagem de rivotril
combina com as paredes
do meu quarto rosa:
foi a primeira vez que me deram
comprimidos com algodão
menina, é dormir tudo o que eu quero
não é morte o que vim comprar
só preciso de algum descanso, (…)”
Ao mergulhar neste “quarto rosa”, regresso às palavras de Francisca Camelo a abrir a penúltima mesa das Correntes d’Escritas. Recordo-lhe o tom de desânimo nesse pedido de desculpas por escrever poemas sobre tristeza quando lhe pedem poemas sobre liberdade. Estou ainda a ouvi-la falar do país, dos pais, de si e é como se fosse eu a falar do país, dos pais, de mim. Da estrada que corremos à procura de uma paragem e de só encontrarmos um semáforo. Vermelho. Parado. Há tanto tempo parado, um mar de gente que se acumula do outro lado da estrada. Como pedras, as palavras da poeta ferem o silêncio. Contam de um medo que “cheira a podre, mas segue vivo”. De ter calhado passar por aqui “a falta de dinheiro, o mercado flexível, a crise de habitação, o juro imprevisível”. “Já não se distingue pátria, estrada ou fome”, diz. Como diz que sem alegria não se fazem revoluções.
“aqui se faz a carne”. Leio devagar cada verso e reencontro-me com a aspereza das palavras que rasgam por dentro, a força da mensagem que arroja aos abismos da condição humana. Refúgio (subterfúgio?), o quarto é cada vez menos rosa nessa impotência de dizer não a quem oprime e agride, nessa raiva de atear a dor por calar a voz. O rosa faz-se cinza e o cinza faz-se negro. Espesso, pestilento, vejo-o espalhar-se pelo chão, subir pelas pernas da cama, cobrir a cadeira e a mesa de cabeceira, derrubar o abajur, “como se apenas o que nos destrói merecesse retrato”. Na mais profunda escuridão, as palavras da poeta tornam-se distintas. São como pedaços do seu corpo, escavados com as unhas do mais fundo de si, dados a ver em carne e sangue. “A carne dos que morreram antes de conhecer os seus poetas”. O “sangue na estação de metro quando pelo telefone me lês em italiano o poema da súplica à mãe de pasolini”.
Seco como um osso na aridez do deserto, insurgente como um fogo que teima em arder, intencional como uma entrada de pé em riste, assim é “O Quarto Rosa”. Olhado de um lado, do outro e de frente, não passa de um quarto igual a tantos outros. É ao penetrarmos nele que percebemos a diferença. No que noutros é aceitação, brandura, permissividade, nele é imposição, protesto, rebeldia. Por isso retemos os lugares onde depois de cair muitas vezes nos ensinámos a cair melhor, tacteamos as rotinas, escapamos da festa em silêncio, envelhecemos dentro de aviões. Podemos não ter a certeza de que é este o combóio certo, mas sabemos que todos nós podemos ser embalsamados um dia. “A forma como nos cingimos às quatro paredes é o que faz de nós parecidos”. Esbocemos, pois, um sorriso à mona lisa, imaginemos a temperatura mais acertada do forno e deixemos que o açúcar imaginário se espalhe debaixo da língua. “Até que a morte nos separe”.
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