LIVRO: “Um Preto Muito Português”,
de Telma Tvon
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2024
“Admite, Budjurra, admite que não consegues. Admite que procuras no sonho a ilusão de uma realidade que desmantela tudo o que conheces como verdadeiro e coerente. Admite que navega na secura da incompreensão um compasso de espera de ti para ti. Admite que não te arrependes. Que caminhas perdido e encontrado na sombra dessa luz que não te ilumina por completo. Estarei só? Serei solitário? Claro que não. Sou a gargalhada que feliz deposita confiança nas suas mentiras. Sou, certamente, o escravo do otimismo irritante.”
Chama-se João Moreira Tavares, mas todos o conhecem por Budjurra. É o Budjurra do Cacém, irmão do Carlos e da Sandra, nascido em Lisboa há 26 anos. Mora na casa dos pais, cabo-verdianos que vivem há muito em Portugal. O seu não é um daqueles bairros a que chamam problemáticos, mas diz-se “um ser deveras problemático”. Problemático porque não se enquadra em nenhum dos cenários em que as estatísticas o querem meter. É licenciado em Gestão Ambiental. Fala português convenientemente, seja lá o que isso for. Ninguém sabe se é Preto o suficiente ou se anda a tentar passar por Branco inconscientemente. O que é correcto notar nele é que é amigo de toda a gente. Amigo e companheiro. Tem princípios e valores que passam pelo respeito à vida de outrem e à sua também. É apaixonado pela vida mas anda confuso com a injustiça e as desigualdades sociais. É completamente pacífico, um pouco preguiçoso. É um bacano que se sente sozinho no mundo em que vive e incapaz de o mudar. É um preto muito português.
Telma Tvon tem neste Budjurra o seu alter ego. Mesmo sendo mulher, mesmo tendo nascido em Luanda, é nele que se projecta para nos convidar a atravessar as fronteiras do preconceito e a olhar para a falta de visibilidade, de representatividade e de liberdade que se abate sobre as comunidades tidas como marginais. Do meio dos seus medos, das suas vontades, das suas verdades, Telma Tvon fala de bondade, de humanidade, do que a inspira, do que a torna mais forte. Mas também do que sente, não podendo ser. Fala de emigrantes e imigrantes, de inclusão e rejeição, de “raivas encarceradas no politicamente correcto”. De como se manipulam as ideias, do racismo estrutural no seio das polícias, do inconformismo face à insensibilidade de quem a ignora, de ser mais uma preta que ameaça o Portugal Branco. De se sentir “à margem de uma sociedade que se quer imaculada e de raízes meramente lusitanas”. Por isso proclama mais comunidade, mais poder, mais preta!
Escrito na primeira pessoa, “Um Preto Muito Português” tem uma construção narrativa que o afasta do romance. As reflexões implícitas em cada um dos seus quase cinquenta capítulos faz pensar nele como um livro de crónicas ligadas entre si pela vontade própria de quem se reclama parte da verdade universal de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Primeira obra com uma força invulgar, o livro é fruto do empenhamento pessoal da autora, dele sobressaindo essa urgência de mostrar, de denunciar, de nos fazer passar “para o lado do outro”, que é algo de que todos precisamos muito. Simples sem ser simplista, a prosa é rica em emoções, oscilando entre o divertido e o magoado. É uma prosa fortemente ritmada - “momentos nitidamente transparentes e sorridentes sem motivos aparentes” -, reveladora do facto de a sua autora estar bem integrada na cultura Hip Hop. Por outro lado, faz-nos sorrir com expressões como maka, nha kamba, sabura ou beber uma jola. Um livro fundamental nessa necessidade de nos encontrarmos com aquilo que somos.
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