LIVRO: “Um Dedo Borrado de Tinta: Histórias de quem não pôde aprender a ler”,
de Catarina Gomes
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2024
“O agá chega finalmente ao papel. Depois dele, Horácio prossegue com o desenho das outras letras do seu primeiro nome. “Primeiro é o agá, que não se lê, mas lê-se o ó à frente, eu sei que levava aqui um ó, ainda lá aprendi na escola; aqui tinha, então, aqui fazia assim um rê, assim; aqui era um a e tinha acento; aqui era um quê; ao fim, aqui à frente, era um i, é mesmo assim; e um ó.” Levava, fazia, era. São letras arrancadas ao passado.”
Não é demais sublinhar o quão preciosos são os “retratos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, conjunto de pequenos-grandes livros publicados regularmente desde Maio de 2014 e que, da saúde à cultura, da ciência à justiça, da educação ao ambiente, das questões sociais à política, nos trazem um olhar próximo sobre a realidade do país e nos ajudam a compreender o que fomos e o que somos no Portugal de hoje. Faço este preâmbulo - em jeito de convite a que considerem a sua inclusão nas vossas listas de leitura -, na altura em que acabo de ler “Um Dedo Borrado de Tinta: Histórias de quem não pôde aprender a ler”, o mais recente volume dos “Retratos da Fundação”, da autoria de Catarina Gomes. Em seis capítulos, o livro narra as histórias de Horácio, Isabel, Conceição, Maria José, Emília e Olívia na sua relação com as letras, histórias de quem não pôde aprender a ler por razões que se prendem, entre outras, com a falta de condições económicas, com o facto de se ser menina, com a ideia feita de que “o saber não dá pão”.
Com Catarina Gomes percorremos as ruas do Casteleiro, aldeia no concelho do Sabugal. Dizia o recenseamento populacional de 2011 que era aqui, ao nível da freguesia, que existiam proporcionalmente mais analfabetos em Portugal (41,5% dos casteleirenses com mais de dez anos, contra os 5% em termos nacionais). Com ela entramos na casa de algumas pessoas que não tiveram a oportunidade de aprender a ler. São, como todos os analfabetos, “uma camada de passado ainda à mostra” e é esse passado que, nas conversas, vem à superfície. Um passado que traz consigo os manuais do Estado Novo, o quadro de ardósia que “parece triste da cor da noite” mas que “é dele que sai a luz que ensina muitos meninos ao mesmo tempo”, as longas distancias a percorrer até à escola, os castigos quotidianos e bem aceites. Um passado do qual sobraram, em muitos casos, “assinaturas disformes, mal elaboradas, deixando supor que o autor apenas possui um conhecimento vago das letras, podendo desenhá-las ao contrário.” Onde a mágoa e o ressentimento são figuras maiores num emaranhado de emoções que todos fazem por sublimar.
Apetece-me chamar-lhe “narrativa de proximidade” porque, no gesto e na palavra, é de proximidade que se faz este livro. Essa é, porventura, uma das suas marcas distintivas, que o afasta da linguagem fria e calculista dos números e das estatísticas. Lemos aquilo que cada uma destas pessoas diz e é como se estivéssemos ali, escutando a chuva que cai com força e vendo as brasas sob o caldeirão negro de ferro onde se apura um almoço de arroz com entrecosto. Ouvimos falar de “crianças com frio, malnutridas, sobrecarregadas de trabalho, crianças pequenas a tomarem conta de bebés, impedidas de ir à escola”. Vamos “à Beatriz”, a juntadora de letras, a decifradora, para que nos leia uma carta que chegou num envelope diferente, agora que o filho morreu e já não há quem leia. Visitamos a antiga escola primária, hoje reabilitada e rebaptizada “Casa da Memória”, parecendo ainda escutar os risos e brincadeiras das crianças, “às carreiras e aos pinotes”. Mais do que um mero retrato, “Um Dedo Borrado de Tinta” é todo um tempo feito de histórias de vida que importa reter. Histórias de quem não pôde aprender a ler.
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