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sábado, 2 de março de 2024

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #79



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #79
Escola de Artes e Ofícios
120 Minutos | Maiores de 14 anos
29 Fev 2021 | qui | 21:30


Peças de um quotidiano que nos inquieta e angustia, a pressão imobiliária, as ameaças ambientais, a crise económica e o preconceito nas suas mais variadas formas, foram os temas estruturantes da sessão inaugural da oitava temporada do Shortcutz Ovar. Distribuída por quatro curtas-metragens - duas das quais primeiras obras -, abarcando o género da ficção, da animação e do documentário, esta foi uma sessão centrada a Norte, feita de gente de coração grande e pés que sabem pisar o chão, que não vira as costas à adversidade e persiste em trilhar caminhos de luta e resistência. Esse Norte de paisagens únicas, fortemente humanizadas, moldadas à imagem das pessoas que nelas habitam e que com elas se misturam e confundem. Daqui resultou uma sessão temática de cariz vincadamente político, assente numa programação inteligente e em filmes complementares entre si, e que tocou o público pela familiaridade com os territórios onde quis instalar-se.

Filme de abertura da sessão, “O Senhor do Porto”, primeira obra da realizadora Tânia Marques, tem como pano de fundo uma rua da freguesia da Vitória, no Porto, e como mote o flagelo da gentrificação e turistificação da cidade (quase metade dos edifícios de habitação desta freguesia são alojamentos locais). À personagem deste “senhor do Porto” junta-se a própria casa onde reside, um e outra símbolos de resistência face às transformações operadas à sua volta. Parte essencial de um trabalho de mestrado que relaciona a Arquitectura e o Cinema, este filme de animação é, mais do que um belíssimo exercício de stop-motion (menos boa a animação 2D, com recurso a desenho digital), um manifesto político, um grito de denúncia face à desintegração e perda de identidade da segunda maior cidade do País.

Do Porto viajamos até Esposende, onde as três icónicas Torres de Ofir, erguidas na primeira linha da praia, enfrentam o inexorável avanço do nível das águas do mar. É numa dessas torres que vive a protagonista de “Litoral” e é na sua figura que o realizador, Francisco Dias, se detém, extraindo das emoções que se desprendem dos seus gestos e expressões a essência de um filme com tanto para contar, ainda que prescindindo em absoluto da palavra. Trunfo maior de um filme com imagens de grande beleza, Vanda Dias mostra-se perfeita nessa espinhosa tarefa de dar corpo a uma personagem que só com o corpo comunica. E há depois o mar, esse extraordinário mar de águas escuras e revoltas, personagem acima de quaisquer outras, com a sua força e o seu fragor, a sua inquietação, os seus caprichos.

Voltamos a descer no mapa, fixando-nos zona da Maia e de Matosinhos, onde somos confrontados com os versos de Alexis Bouvier em “La Canaille”, poema revolucionário de 1865 e que foi, em boa medida, precursor da Comuna de Paris. É lá que vivem a Leninha, o Bezelga ou o Sr. Manel, três personagens peculiares, a canalha “que passeia despojadamente na vida, ignorando as tradições e etiquetas que mantêm a aparência da nossa sociedade e seus valores nacionais”. Produzido e realizado por João “O Inglês” Pinto Seabra, “Feios, Porcos e Maus Doc.” é um manifesto que procura dar voz a quem não a tem, gente “feia” que exibe pomposamente o seu aspecto decadente nas ruas rectas e limpas da cidade, gente “porca” que acumula camadas de terra e sarro debaixo das unhas, gente “má” que não aceita o lugar que a sociedade lhe oferece, que não se esconde, que questiona e força o confronto com as ideias estabelecidas. “C’est la Canaille, et bien j’en suis”.

Permanecemos em Matosinhos, centrando a nossa atenção no seu porto de Pesca e em quem, directa ou indirectamente, retira do mar o seu sustento. Fruto do programa “The Factory”, organizado pela Quinzena dos Realizadores do Festival de Cinema de Cannes, “As Gaivotas Rasgam o Céu”, dos realizadores Mariana Bártolo e Guillermo García López, foi a curta-metragem que encerrou a sessão. Num preto e branco depurado, o filme fala da crise no sector das pescas, das ameaças que pendem sobre os mais desfavorecidos, das oportunidades de negócio que se abrem com a chegada de turistas aos magotes, em barcos de cruzeiro que são autênticas cidades flutuantes ou nas dezenas de voos diários oferecidos por companhias low-cost. E fala de Clara, proprietária de um bar de pescadores ameaçado pelo encerramento, e de Raquel, empregada em navios de cruzeiro. Fala dos seus medos e contradições, do abrigo que encontram nos braços uma da outra, tão frágil e precário como frágil e precária é a vida de ambas. Rigoroso, contido, o filme acaba por congregar os temas dominantes dos filmes anteriores, colocando a tónica na forma como lidamos com as pressões e ameaças. Fecho com chave de ouro de uma sessão fortemente emotiva, a prometer uma temporada recheada das melhores surpresas.

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