Páginas

quinta-feira, 28 de março de 2024

CINEMA: "Mataram o Pianista"



CINEMA: “Mataram o Pianista” / “They Shot the Piano Player”
Realização | Javier Mariscal, Fernando Trueba
Argumento | Fernando Trueba
Direcção artística | Javier Mariscal
Montagem | Arnau Quiles
Interpretação (vozes) | Jeff Goldblum, Tony Ramos, Abel Ayala, Roberta Wallach, Ângela Rabello, Stephen Hughes, Alejandra Flechner, Vinicius de Moraes, Malena Barreto, Chico Buarque, Gilberto Gil, João Gilberto, Edu Lobo, Milton Nascimento, Roberto Menescal
Produção | Cristina Huete
França, Holanda, Espanha, Portugal, Peru, Reino Unido | 2023 | Drama, Animação | 103 Minutos | Maiores de 12 anos
Vida Ovar
24 Mar 2024 | dom | 19:35


Nova Iorque, 2009. É numa livraria da cidade que decorre a apresentação do livro “Mataram o Pianista”, da autoria do jornalista e escritor Jeff Harris. Falando da obra e da forma como se foi desenrolando o processo de escrita, Harris convida-nos a acompanhá-lo nas suas pesquisas, centradas inicialmente no período dourado da Bossa Nova, mas que acabaram por se focar, de forma quase obsessiva, na personagem de Francisco Tenório Júnior, um excepcional pianista brasileiro, desaparecido misteriosamente no dia 18 de março de 1976, depois de um concerto em Buenos Aires, onde actuara ao lado de Toquinho e Vinícius de Moraes. Seis dias depois, um golpe de estado levava à queda de Isabel Perón e o Tenente-General Jorge Rafael Videla assumia a Presidência da Argentina, dando início a sete anos de uma sangrenta ditadura militar, período classificado como um “processo genocida” e marcado por crimes contra a humanidade, que se saldaram por mais de 30.000 pessoas mortas ou desaparecidas, sobretudo jovens oponentes ao regime.

Filme de animação ao ritmo do Jazz e da Bossa Nova, “Mataram o Pianista” tem por detrás uma particularidade, visto ter sido filmado como um documentário e posteriormente ter-lhe sido acrescentada a animação por um processo que vem dos primórdios do cinema e se designa por rotoscopia (desenho de imagens sobre película ou filme digital). Aos realizadores Fernando Trueba e Javier Mariscal terá parecido que esta solução servia melhor os seus propósitos, depois de uma estreia auspiciosa da dupla no género com “Chico & Rita”, filme de 2010 que recebeu a nomeação para o Óscar de Melhor Longa-Metragem de Animação e que triunfou nos Prémios do Cinema Europeu. É, pois, um filme de carácter histórico, com datas e personagens reais, mas que integra muito bem a ficção mediante a presença de temas habituais na filmografia de Trueba, do seu amor pela Nouvelle Vague (com um piscar de olho a Truffaut e Godard) à denúncia das ditaduras que assumiram os destinos de muitos países da América Central e do Sul ao longo de décadas.

Narrados com intensidade e ritmo, os acontecimentos levam-nos a cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo ou Buenos Aires, ao encontro das pessoas que privaram com Tenório Jr. e que podem contribuir para o aclarar do mistério. Desta forma, o espectador vai recebendo pistas que lhe permitem juntar as várias peças do puzzle e fazer o seu próprio juízo. A música e a cultura brasileiras são tratadas com imenso carinho – geniais as conversas mantidas com Chico Buarque ou Caetano Veloso, Milton Nascimento ou Gilberto Gil –, assim como os pormenores do Beco das Garrafas, de um cartaz do filme de Glauber Rocha “Deus e o Diabo na Terra do Sol” ou de uma Ella Fitzgerald, descalça, a pisar o palco de um pequeno clube de Jazz. A forma como os realizadores partem de uma tragédia individual para a denúncia da Operação Condor e da intromissão dos Estados Unidos na política latino-americana é particularmente inteligente. O resto são as animações vivas e uma paleta de cores muito rica, fazendo com que o filme se torne apelativo, estimulante e visualmente deslumbrante.

Sem comentários:

Enviar um comentário