LIVRO: “A Vida Airada de Dom Perdigote”,
de Paulo Moreiras
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Casa das Letras, Fevereiro de 2023
“ - Quer sua mulher enganá-lo, senhor, além das aleivosias saídas de sua boca tudo o que ela acabou de proferir são esfarrapadas mentiras - retorqui, em minha defesa. - Nunca atentaria contra sua esposa, senhor, antes pelo contrário, Fuji dela como o Diabo da cruz, justamente para evitar este género de acusação. As luvas foram roubadas, são um estratagema que ela inventou para concretizar os seus maléficos intentos. Foi Dona Serafina quem me procurou na minha pousada e me assaltou no enxergão, pedindo que dormisse com ela, mas neguei-me e enxotei-a…”
De origem espanhola, a novela picaresca é um género literário que não caiu no olvido e continua a ser cultivado nos dias de hoje por um conjunto de autores que encontram nos seus pressupostos motivos de interesse suficientes para o manterem vivo e de boa saúde. Adaptando, reescrevendo e interpretando, fazem da sua prosa um exercício de imaginação loquaz e de bem humorada criatividade, ao mesmo tempo que prestam homenagem à originalidade e engenho de autores como Francisco de Quevedo, Mateo Alemán, Juan Martí, Francisco López de Úbeda, Juan Cortés de Tolosa e outros. Está nesta linha Paulo Moreiras, autor de “A Vida Airada de Dom Perdigote”, um livro extraordinariamente bem escrito, que traz a lume uma profusão de vocábulos e de expressões há muito caídas em desuso, adequando-as com mestria e rigor às aventuras e desventuras de um fidalgote mil vezes erguido e outras tantas desvalido, entre folguedos e degredos, mesa farta e rijas côdeas, ricos brocados e os mais esfarrapados trapos.
“A Vida Airada de Dom Perdigote” narra a história de Tanganho Perdigão Fogaça, resgatado, como Moisés, do interior de uma pequena balsa de madeira encontrada nas margens de um rio e registado em Olivença, no ano em que morreu Camões. “Petiz mal-amanhado, carão de fome, olhos de sôfrego e certezas de chamiço”, vê-lo-emos nas idas à escola, em demanda de ofício ou nas visitas à bruxa, até deixar em definitivo a casa dos pais adoptivos para estudar em Badajoz, no Colégio del Señor Jesús de la Piedra, “para mal dos seus pecados e das suas alegrias”. A partir daqui, as histórias sucedem-se a um ritmo frenético, dando conta de misérias e perseguições, infortúnios e desastres, mas também de sucessos e conquistas, graças aos seus extraordinários dotes de espadachim. De Sevilha a Trujillo, de Toledo a Valladolid, sede da corte e umbigo do mundo, acompanharemos as mil e uma peripécias de quem dormiu com a sorte e acordou com o azar, esbarrou com a desgraça em forma de gente, acompanhou bolónios e mentes brilhantes e fez amizade com El Greco, Cervantes, Quevedo e Jacquespêra (!).
Divertido, engenhoso, é um livro pleno de erudição, mas sem ser pesado ou pretensioso. O seu lado aventureiro, audacioso e arrebatado, tem o condão de cativar o leitor e fazê-lo prosseguir nesse sôfrego virar de página em busca de novas peripécias. Mas é no seu cerne que se concentra todo um manancial de ensinamentos que encantam pela variedade e riqueza, ao mergulharem nas raízes da nossa língua materna, dando achegas à forma como cresceu e se afirmou. É delicioso ver como Paulo Moreiras recupera palavras como sastre, chufleta, pantorrilha, madrigueira, alicantina, manustérgio, párvulo ou pringar, fazendo brilhar o texto. Ou a adequação que faz de expressões como “escarvou o galo e descobriu o cuchilho”, “ainda não assamos e já pingamos”, “dar nas matorrangas” ou “viemos pelo mosto e levámos com o bagaço”. O autor tem o cuidado de partilhar um conjunto de passagens de obras seminais do género picaresco e das quais se apropriou, levantando a ponta do véu sobre alguns dos seus mais significativos exemplares. Há, enfim, um enorme cuidado na reconstituição histórica, oferecendo ao leitor um retrato político, económico e social de Espanha à época da Dinastia Filipina.
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