LIVRO: “O Nome Que a Cidade Esqueceu”,
de João Tordo
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Novembro de 2023
“Ao mesmo tempo, eu começava a entender a solidão das grandes cidades. A sobrevivência num lugar como Manhattan não dependia tanto da proximidade como da distância; não dependia tanto do afecto como do desapego. Tal como Nikolai, ou George B., ou Dorah, ou as pessoas que andavam nas ruas e no metropolitano, eu começara a construir uma redoma em meu redor. Tornara-me um pouco menos sensível, um pouco menos doce, um tanto mais esquiva. Um dia, tal como George ou Dorah ou Nikolai, não deixaria entrar na minha vida ninguém que pudesse magoar-me, e também ninguém que pudesse fazer-me bem.”
“O Nome Que a Cidade Esqueceu” traz-nos a história de Natasha, uma jovem mulher que deixa o país onde nasceu, a Georgia, e emigra para os Estados Unidos depois de uma bomba ter caído no seu quintal. Da lenta recuperação sobrou uma terrível gaguez, que a ataca com força nos momentos mais inoportunos. A essa dificuldade juntam-se outras, só em parte colmatadas graças ao seu estatuto de refugiada e ao dinheiro que recebe das Nações Unidas. A solidão, essa, veio para ficar. É na lavandaria do senhor Fu, na esquina da rua onde vive, que têm lugar os poucos contactos sociais que mantém. Pessoas como Dorah, Clive ou Nikolai ajudam-na, aos poucos, a afastar da lembrança as imagens impressivas do seu tempo de infância e juventude, a saudade dos pais e do irmão, militar da Guarda Nacional a lutar na Ossetia do Sul. A grande mudança na sua vida, porém, dá-se quando conhece Julie e, através dela, George B., que a contratará para um tarefa peculiar.
A celebrar duas décadas de vida literária, João Tordo regressa à cidade onde tudo começou, oferecendo-nos uma narrativa recheada de mistério, solidão e ternura. Partindo de uma história verídica publicada no New York Times, o autor constrói um romance enigmático, impulsionado pelo acaso e pela memória. O resultado é “uma narrativa que disseca a solidão, grande doença dos nossos tempos, confrontando as suas personagens e os leitores com o passado com que todos tentamos reconciliar-nos”. Aquilo que João Tordo nos vem dizer é que o drama de Natasha é um drama colectivo, a sua condição de refugiada como algo ao qual nenhum de nós escapa, solidários que somos na desconfiança, reféns da angústia e do medo, entregues aos caprichos de um acaso onde brincam a sorte e o azar, um verdadeiro jogo do gato e do rato que faz com que cada vez mais nos fechemos ao mundo e a nós próprios.
Construída com enorme sensibilidade, a história é o retrato de uma sociedade em vias de desumanização, mas que ainda conserva algumas bolsas de bondade e de esperança, onde a solidariedade e a cumplicidade ainda mantêm algum significado. Com um forte sentido visual, “O Nome Que a Cidade Esqueceu” faz do tempo e da memória um elemento vital, encerrando a acção em espaços concentracionários e lúgubres, onde o calor, quando chega, é sempre excessivo, opressivo, asfixiante. Ao contrário dos filmes de Coppola ou Scorsese, povoados por uma fauna ululante de italianos ou irlandeses, os ruídos aqui mais não são do que ecos da grande cidade, longínquos e deformados. Tal como o passado se faz presente nuns Adidas Sputnik vermelhos ou numa imagem de Steve McQueen, num cromo desbotado do Yogi Berra ou na sucessão de nomes inscritos nas Páginas Amarelas. Um dos melhores livros de João Tordo.
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