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segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

LIVRO: "Teoria King Kong"



LIVRO: “Teoria King Kong”, 
de Virginie Despentes
Título original | King Kong Théorie (Éditions Grasset & Fasquelle, 2006)
 Tradução | Luís Leitão 
Ed. Orfeu Negro, Setembro de 2016 (1ª reimpressão, Maio de 2023)


“Os homens denunciam com virulência injustiças sociais ou raciais, mas mostram-se indulgentes e compreensivos quando se trata de dominação machista. Muitos deles pretendem explicar que o combate feminista é acessório, um desporto de ricos, que não é oportuno nem urgente. É preciso ser imbecil, ou absolutamente desonesto, para considerar uma opressão insuportável e a outra plena de poesia.”

Não pede desculpa de nada, não se vem lamentar. Sente-se uma mulher mais desejosa do que desejável, “mais do tipo King Kong do que Kate Moss” e diz não ter a mínima vergonha de não ser uma “gaja superboa”. Lembra que o soldado mais conhecido da guerra no Iraque é uma mulher e olha com desprezo os homens que apontam o dedo à emancipação feminina como a causa da sua desvirilização. Deixa muitas perguntas, uma das quais acaba por se impor acima de qualquer outra, pelo menos na minha visão: “O que implica, em concreto, ser um homem, um homem verdadeiro?” Não vou transcrever as conclusões de Virginie Despentes, mas algo me diz que os “homens verdadeiros” não lhes irão achar piada nenhuma. Olharão para elas com desprezo e serão tentados a fazer troça, julgando ver nisso um reforço da sua masculinidade. Mas a verdade é que nelas se abriga algo que ninguém, seja homem ou mulher, poderá negar. Este facto, por si só, fará de “Teoria King Kong” um livro obrigatório.

É verdade que, de acordo com uma visão machista, Virginie Despentes tem uma particular apetência para se “pôr a jeito”. Sentiu raiva por ser uma excluída a receber o RSI, deitou-se com centenas de homens, prostituiu-se, andou à boleia, foi violada, voltou a andar à boleia. Fala disto de uma forma assumida, sem “papas na língua”, segura de que só a si diz respeito aquilo que faz do seu corpo. Percebe que talvez possa parecer aos outros “demasiado agressiva, demasiado ruidosa, demasiado grosseira, demasiado brutal, demasiado hirsuta, sempre demasiado viril”. Até acha bem que hajam mulheres que gostam de seduzir ou de arranjar marido, que possam ser meigas, esfuziantes na sua feminilidade, jovens e muito belas ou vaidosas e flamantes, “mulheres que cheiram a sexo e outras a bolo do lanche das crianças que saem da escola”. Só que ela não é assim e, na qualidade de “proletária do feminismo”, deixa um aviso a todas as mulheres: “competente” continua a querer dizer “masculina”.

Dando azo à paixão de inverter as coisas, “só para ver o que acontece”, Virginie Despentes coloca-se, frequentemente, no lugar do homem. “Preciso de um homem só meu e que eu possa encontrar em casa a toda a hora”, diz, fazendo suas as palavras de Antonin Artaud, com a subtil diferença da troca de género. Este exercício é-nos proposto com grande frequência, acentuando aquilo a que a autora chama “a arte do servilismo” e na qual muitas mulheres continuam a ser exímias. Masturbação, pornografia, prostituição ou violação, são temas cujos desenvolvimentos carregam em si diferenças de atitude, comportamentos e pontos de vista, espartilhados por uma moral que as alimenta e suporta. Impiedoso libelo acusatório contra uma sociedade empenhada em conservar os costumes vigentes e perpetuar a desigualdade entre homens e mulheres, “Teoria King Kong” é um acto de coragem face às consequências que dele advêm. Sobre Virginie Despentes caem a condescendência, o desprezo, o sarcasmo, as conclusões deslocadas. Mas haverá sempre aqueles (poucos) que se mostrarão gratos pela convicção, clareza e irreverência das suas ideias.

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