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terça-feira, 16 de janeiro de 2024

LIVRO: "Afectuosamente"



LIVRO: “Afectuosamente”,
de Margaret Atwood
Título original | “Dearly” (O. W. Toad, Ltd. 2020)
Tradução | João Luis Barreto Guimarães
Ed. Bertrand Editora, Julho de 2021

“Oh, crianças, irão vocês crescer num mundo sem canções?
Sem pinheiros, sem musgo?”

Embora seja mais conhecida pelas suas obras de ficção, nomeadamente por romances como “Olho de Gato”, “O Ano do Dilúvio” ou “A História de uma Serva”  publicado pela primeira vez em 1985 e que se tornou num dos principais textos feministas da era #metoo –, Margaret Atwood é, desde o início da sua carreira, uma das mais importantes poetisas contemporâneas e uma das poucas escritoras igualmente talentosas na ficção e na poesia. “Afectuosamente”, a sua primeira colectânea de poesia em mais de uma década, tem para oferecer cinquenta e sete poemas nos quais se passeiam aranhas, pássaros e lobos, gatos fantasmas e mulheres de lata, zombies e extraterrestres, utensílios tristes e crianças que são (bem o sabemos) o futuro. Individualmente ou no seu conjunto, eles dão prova da qualidade inegável do trabalho da escritora, luminoso e sombrio à vez, alimentado por um poderoso fluxo de energia criativa, como um vendaval que nos desalinha e parece querer levar-nos a voar acima das nuvens.

Tal como nos romances, a poesia de Margaret Atwood mostra-nos duas facetas distintas da sua escrita: Uma inflamada, empenhada, viva, enérgica, febril, que gosta de provocar e não foge à polémica; a outra, profundamente poética, ligada ao milagre da própria linguagem, sempre misteriosa e imprevisível nas suas preocupações como nos resultados. São prova disto as duas séries que abordam a violência sobre as mulheres – numa sequência intitulada “Canções para irmãs assassinadas” - e os efeitos da acção do homem sobre o ambiente, naquilo a que Atwood chama a era do “plasticeno”, cujo ciclo de nove poemas, “Suite do Plasticeno”, reflecte a intrusão do plástico em todo o mundo natural, nas lagoas de águas calmas e nos ramos das árvores, nos estômagos das aves ou das baleias bebés. Mas leia-se, também, “Oh, Crianças”, “Roupa de Princesa”, “Traição” ou “Desenterrando as Citas” e veja-se o quanto a poesia de Atwood se impõe plena de actualidade, intensa e vibrante na sua mensagem, determinada e imediata no seu preceito.

Julgo ser importante falar na particularidade de “Afectuosamente” nos ser apresentado em edição bilingue, abrindo a possibilidade de entrevermos o fascinante mundo da tradução, no caso concreto um trabalho a cargo de João Luís Barreto Guimarães. Numa área que normalmente lhe escapa, o leitor não deixará de admirar os desafios que se colocam ao tradutor e ter uma ideia das estratégias para os ultrapassar. Isto é tanto mais interessante quanto sabemos que, antes de o ser, o tradutor é um leitor e, no caso concreto, ele mesmo um poeta (afinal, quem senão um poeta para verter “rusted spells” em “feitiços enferrujados”?). Enfim, “Afectuosamente” é uma poderosa demonstração de como a poesia pode encarnar e celebrar a beleza da vida, face à mais profunda tristeza, angústia e temor. Para ler em voz alta ou em recolhimento, no cimo da montanha ou na ilha deserta, em calções e havaianas ou de sobretudo e gorro enfiado na cabeça. O milagre estará sempre lá, a transformar a raiva em beleza e a dor em brilho cintilante.

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