LIVRO: “Manhã e Noite”,
de Jon Fosse
Título original | “Morgon og Kveld” (Det Norske Samlaget, Noruega, 2000)
Tradução | Manuel Alberto Vieira
Ed. Cavalo de Ferro, Novembro de 2020 (5ª edição, Outubro de 2023)
“ (…) olha só para ti que menino tão perfeitinho e és o menino mais lindo que algumas vez existiu és a coisinha mais fofa de sempre a melhor e mais bela coisinha Oh se és que belo rapaz sim É lindo Sim és o bem mais precioso É agora pai de um menino e macio e encharcado e depois esta estranha quietude silente e depois oh oh oh e o branco oh e macio tão oh e rijo e oh oh assim assim oh oh e tão branco e depois quase quente e oh oh tão sereno Johannes chamar-se-á Johannes Será esse o seu nome sim (…)”
Foi pela via do teatro que, pela primeira vez, me cruzei com Jon Fosse e com a sua escrita. A peça levada à cena no Carlos Alberto intitulava-se “O Homem da Guitarra” e era um monólogo encenado e interpretado por Manuel Wiborg. Dela, contudo, não saberei dizer nem bem nem mal, do tão pouco que até hoje me ficou. Mais do que recuperar uma memória distante, a recente atribuição do Nobel ao escritor fez com muitos dos seus livros fossem reimpressos e passassem a preencher os escaparates, o que me motivou para ir ao encontro da sua obra. Sem referências quanto a este ou àquele livro, calhou pegar em “Manhã e Noite” e em boa hora o fiz. Extraordinariamente vívida, intensa e penetrante, a escrita de Jon Fosse impressiona pela forma como valoriza a palavra, pela fidelidade aos ambientes, pelo rigor das descrições. Mas também pelo arrojo formal que ultrapassa a mera abolição do uso dos pontos finais, por essa relação intrínseca com a oralidade, pela intencionalidade das ideias assente na repetição constante de certas palavras, pela ternura com que abraça as personagens e que faz do romance um longo e belo poema.
“Manhã e Noite” conta a história de Johannes em dois momentos absolutamente cruciais da existência de qualquer ser humano: a nascimento e a morte. Pescador como o pai, Johannes toda a vida habitou a mesma casa, em Holmen, no coração de um fiorde norueguês. Saberemos que é um lindo rapazinho e que nasceu forte e saudável - “parece impossível que um fedelho tão pequeno possa ter tamanha potência na voz”. Não será, porém, o estado da criança ou da mãe aquilo que mais chama a atenção do leitor neste (breve) primeiro capítulo, antes a forma como Jon Fosse, em “pinceladas” breves, dá a ver todo um quadro onde cabem o enquadramento natural da casa de família, um modo de vida austero, a integração da família na comunidade, a forte religiosidade que anima as personagens. São estas as marcas que justificam o desenvolvimento do segundo capítulo, aquele da morte de Johannes, a narrativa coberta de uma patine de irrealidade, a tocar nalguns pontos a escrita de Juan Rulfo, Manuel Scorza, Miguel Ángel Asturias e outros mestres do realismo mágico.
“Manhã e Noite” é um livro impressionante. O seu fulgor narrativo coloca o leitor num enorme dilema, entre a necessidade de refrear a leitura para apreender cada passo desta história e o desejo de continuar em ritmo acelerado para se encontrar com o destino último de Johannes (li o livro duas vezes, de rajada primeiro e, depois, calmamente, em êxtase, a beber cada palavra). A “costela” de dramaturgo do autor dá-se a ver de forma muito clara, pela teatralidade que se desprende de cada quadro, de cada gesto, de cada olhar. A bondade do olhar de Jon Fosse sobre esta figura solitária em fim de vida, estende-se ao leitor e contamina-o, a ponto de se ver no lugar da personagem e a fazer sua a experiência surreal que a atravessa. A espécie de balanço que Johannes faz de toda uma vida, enfatizando os momentos mais significativos, é profundamente comovedor. Como comovedor o derradeiro encontro entre pai e filha os afasta de forma inexorável. De um autor essencial, uma obra-prima da literatura moderna.
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