LIVRO: “Lições de Química”,
de Bonnie Garmus
Título original | “Lessons in Chemistry” (2022)
Edição | Carmen Serrano
Ed. ASA, Junho de 2022
“A verdade é que ainda estava zangada com Calvin - por lhe ter mentido em relação ao financiamento da pesquisa dela, por o seu espermatozóide ter desafiado a probabilidades contracetivas, por ter a mania de correr ao ar livre quando toda a gente corria dentro de casa em sapatilhas de ballet. Sabia que era injusto estar zangada com ele, mas a dor é assim: arbitrária. De qualquer maneira, ninguém sabia como ela estava zangada; era algo que guardara para si. Bom, exceto durante o trabalho de parto, quando talvez tivesse gritado algumas coisas lamentáveis, possivelmente cravando as unhas no antebraço de alguma pessoa desconhecida durante as contrações mais fortes. Lembrava-se de haver mais alguém aos gritos e a praguejar. Parecera-lhe na altura estranho e muito pouco profissional.”
Parece-me difícil que possa haver quem não simpatize com Elizabeth Zott. Aluna de Química brilhante e investigadora meticulosa e exigente num Instituto de Pesquisa, vê-se confrontada com um mundo onde ser mulher é enfrentar os maiores obstáculos que um machismo sem limites impõe. É ser resiliente na luta constante contra a violência física ou psicológica. É apelar à sua integridade moral a fim de fazer valer uma posição que é sua por direito na sociedade e no mundo. E se isto é assim nos dias de hoje, imagine-se como seria nos anos 60, no fechado meio da investigação científica onde os homens eram reis e senhores. Empenhada num projecto sobre a abiogénese, nada mais nada menos do que as origens da vida, Elizabeth tem no namorado o seu grande (o seu único) suporte. Mas o drama instala-se e tudo muda. Grávida, vê-se forçada a mudar de vida e vai parar à televisão graças a um conjunto de circunstâncias absolutamente fortuitas. Em pouco tempo ela será a estrela revolucionária do programa de culinária mais amado dos Estados Unidos.
Divertido, imprevisível, inteligente, mordaz, “Lições de Química” é um livro empenhado em explorar as contradições que envolvem as questões de género e mostra-se fértil em situações rocambolescas, que nos fazem rir, mas dão igualmente que pensar. Fazendo incidir as atenções sobre esta mulher absolutamente invulgar, fiel aos seus padrões de conduta e irredutível naquilo que julga serem os melhores meios para alcançar os objectivos a que se propõe, Bonnie Garmus consegue o dois em um perfeito: Não só alimenta a cumplicidade do leitor com a jovem Elizabeth, como promove a ideia de que a libertação da mulher não surge por geração espontânea. Desarmante de naturalidade, intensa, segura de si, Elizabeth conquista rapidamente o leitor. Ela e “seis e meia”, um cão dotado de um forte espírito crítico, espécie de “anjo da guarda” da jovem mulher. Vê-lo assumir o controlo da narrativa e chamar a nossa atenção para os detalhes que porventura nos tenham escapado é delicioso. A leitura torna-se viciante.
Bonnie Garmus mostra-se particularmente talentosa na forma como apresenta as figuras desta reduzida comunidade, dispondo-as no tabuleiro das relações interpessoais com cuidado e sensibilidade. O artifício da escrita é suficientemente subtil para mostrar ao leitor aquilo que verdadeiramente interessa: que o alvorecer do feminismo moderno assenta, de facto, em pequenos grupos mais ou menos clandestinos de mulheres e homens que souberam libertar-se dos constrangimentos impostos pela sociedade, vencer os ditames culturais marcados pela arbitrariedade e o preconceito e colocar no topo das prioridades a aceitação mútua nos seus próprios termos. Foi gente à frente do seu tempo que soube manter-se firme e unida até que o mundo acabasse por assimilar a bondade e a justiça das suas causas. Devemos-lhes isso, tal como devemos a escritores como Bonnie Garmus este reavivar de memórias tão importantes na construção de uma sociedade melhor e mais justa.
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