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terça-feira, 1 de agosto de 2023

LIVRO: “Os Pombos da Senhora Alice. Envelhecer em Portugal”



LIVRO: “Os Pombos da Senhora Alice. Envelhecer em Portugal”, 
de Ana Catarina André
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Maio de 2020


“Nonagenária, lembra uma criança de tão magra e pequena que é. Tem os braços e as pernas franzinas e pouco mais de um metro e meio de altura. Está aninhada no sofá da sala, coberta com uma manta, há mais de quatro horas. Ficou naquela posição desde que a funcionária do serviço de apoio domiciliário do Centro Social Paroquial de Santa Catarina, em Lisboa, a deitou ali, à hora do almoço. Não pode caminhar sozinha. Não recebe visitas. Fica onde as auxiliares a deixam, ora no cadeirão, ora no sofá ou na cama. Não consegue mudar a televisão, um aparelho antigo danificado pelos anos que emite imagens de cor distorcida e formas enviesadas.”

Num prédio centenário ou numa república sénior, num lar de idosos ou num quarto alugado, seja em Lisboa ou numa aldeia perdida na Serra do Açor, a realidade de quem vive na dependência do cuidado dos outros não difere de forma substancial. É disso que “Os Pombos da Senhora Alice” nos vem falar, ao mesmo tempo lembrando que o tempo avança e a idade não perdoa num Portugal cada vez mais envelhecido e sem respostas para a discriminação, as dificuldades e a vulnerabilidade dos mais velhos. A debilidade física e a precariedade económica apenas vêm agravar os problemas, pondo a nu a inexistência ou insuficiência de respostas por parte do estado social, mas também a forma como as pessoas não se preparam para a velhice, ao não conseguirem estabelecer relações sólidas com a família, os amigos e a vizinhança. Página a página, vamos tomando consciência do drama daqueles para quem o tempo é sinónimo de solidão e isolamento. E que podem muito bem viver já ali, ao virar da esquina. Ou na porta em frente. E nós sem darmos por isso.

Os dois pães fatiados de molho com sementes e arroz que são almoço de dezenas de pombos. A carta que avisa que a renda vai subir dos actuais 17 euros para mais de 700. O comprimido que só no dia seguinte chegará para aliviar as dores de quem é prisioneiro na própria casa. O telefone como único meio de partilhar tristezas e a esperança de que, talvez um dia, tudo seja menos doloroso e mais feliz. As histórias sucedem-se e, com elas, também a inquietação, o sobressalto, a estranheza. A revolta. Vemos como a vida se mostra tão madrasta para tantos que, diariamente, são obrigados a lidar com as incoerências e injustiças do idadismo, esse conjunto de estereótipos que tendem, entre outros, a caracterizar as pessoas mais velhas com traços negativos, como a incapacidade e a doença. Por isso nos dói tanto saber nossas as suas histórias. Por isso nos magoa ver que há quem se aproveite das suas fragilidades, submetendo-os a situações efectivas de maus-tratos ou de abuso.

Publicado em Maio de 2020, “Os Pombos da Senhora Alice” é um livro extraordinário na sua forma de contar, perfeito no equilíbrio que alcança entre a indispensável proximidade e o distanciamento basilar. Um livro que antecipa realidades tão cruéis como uma pandemia ou uma guerra na Europa, que mostra o impacto que podem ter no agravamento das situações de isolamento, no disparar dos preços face a uma crise inflacionista brutal ou em fenómenos como a pressão imobiliária à conta do turismo de massas. É nesta altura que os factos narrados por Ana Catarina André mostram o quão abertas se mantêm as feridas dos mais idosos e desprotegidos, cada vez mais fundas, infectadas de medo e solidão. Com o País eufórico por causa das Jornadas Mundiais da Juventude, pergunto-me o que será feito da Maria de Lurdes, do Vítor ou da Elesinda? Terá a Lucinda conseguido segurar a fracção do prédio apalaçado onde vive? Será que a Maria continua a somar de cabeça números de telefone como forma de exercitar a memória? A Tuxa ainda fará a ronda dos idosos das aldeias espalhadas pela serra? Continuarão os pombos a mitigar a solidão lancinante em que Alice vive (se é que ainda é viva)?

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