Páginas

sábado, 24 de junho de 2023

TEATRO: "Teoria das Três Idades"



TEATRO: “Teoria das Três Idades”
Criação e interpretação | Sara Barros Leitão
Assistência à criação e produção | Patrícia Gonçalves
Cenografia e figurinos | Catarina Barros
100 Minutos | Maiores de 12 anos
Cineteatro Alba
23 Jun 2023 | sex | 21:30


Figura central na história do teatro português, a mais antiga companhia de teatro profissional do país ainda em atividade, o TEP - Teatro Experimental do Porto celebrou no passado dia 18 de Junho sete décadas de vida. Na mesma data, em 2018, Sara Barros Leitão estreava na Sala do Tribunal do Mosteiro de S. Bento da Vitória este “Teoria das Três Idades”, espectáculo que o jornal Público elegeu como um dos melhores da temporada. Cinco anos volvidos, a actriz reata o diálogo com o passado através da revisitação do seu trabalho, confrontando-se com o que escreveu e criou e avaliando o que era e a forma como pensava. Recortes de jornal, cortes da censura, atas, contratos, fotografias, gravações e programas de espetáculos, relatórios de contas e demais material de arquivo, alcançam um novo protagonismo e o público volta a ser confrontado com histórias e memórias, vidas e sonhos, lutas e conquistas, que traçam a história do TEP, ao mesmo tempo que acompanham a evolução da sociedade portuguesa, entre a repressão e o preconceito, a indignação e o sonho de liberdade.

Os laços de parentesco entre “Teoria das Três Idades” e “Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa”, a anterior criação de Sara Barros Leitão, são evidentes. A mesma paixão pelos documentos que se escondem nos arquivos, a mesma capacidade de articular histórias com a minúcia de quem compõe um puzzle, a imaginação a servir de motor à ficção e a imiscuir-se no real, a forte presença em palco, aquela empatia com o público no apelo às memórias de todos a partir das histórias de cada um. O início da peça é desarmante. Estão ali os fundamentos científicos da catalogação e as boas práticas de conservação de documentos, mas está também a ansiedade de mergulhar nos arquivos e a emoção da descoberta, o todo “embrulhado” num humor fino que se irá estender pela peça adentro. Está em marcha a história do TEP, feita de apoios perdidos, apoios ganhos, casa própria, casa alheia, casa que arde, nova casa, casa que mete água, casa em obras. Uma história de palcos, teatros, auditórios, salas de ensaio, armazéns e a vida toda guardada em caixas. Uma história onde entram Shakespeare, Ionesco, Sófocles e autores contemporâneos. Também romances, choros e a PIDE à porta.

Brilhante contadora de histórias, Sara Barros Leitão vai substituir a “catalogação científica” por uma “catalogação emocional”. A correspondência geral passa a integrar a categoria “sócios indignados”; no lugar da “censura” cria-se a categoria da “clandestinidade das metáforas e das pausas enquanto esperamos pela liberdade”; onde estão as tabelas de ensaio, cartas, documentos, circulares, passam a estar “luta pela profissionalização”, “o que devemos a quem veio antes de nós” ou, muito simplesmente, “sonhos”. Em cada papel há uma centena de possibilidades. Cada papel leva a uma história, que leva a outra história, que leva a outra história ainda. Das “chamadas à tabela” na peça “A Batalha Naval” às sucessivas sessões da Assembleia-Geral Ordinária de 1967, do pedido de demissão da posição de sócio por “falta de regalias” à circular de um encenador que denuncia a presença de pessoas estranhas nos ensaios, da reivindicação dos actores por um dia de descanso semanal ao domingo à censura do actor por falta injustificada ao ensaio, é esmagador aquilo que faz a história da peça, a história do TEP. “A Bem da Nação”, a Comissão [de Censura] aprova a representação da peça, “devendo ser suprimidas as palavras merda e socorro”. Outras vezes a censura reprova. Outras, ainda, reprova aquilo que, “por lapso”, tinha aprovado.

Roga-se que um actor preso pela PIDE possa ser libertado para actuar “no próximo domingo”. Pede-se que Brecht e outros dramaturgos possam ser representados no nosso País, “como já acontece em Espanha e noutros países”. Até que o dia inicial, inteiro e limpo, se impõe. O discurso do 1º de Maio é o momento mais alto da peça. Novas tarefas são impostas ao Teatro Experimental do Porto, no quadro de um Portugal renovado. É urgente um teatro que sirva o povo e, para isso, há que “reestruturar toda a actividade, todas as bases funcionais, criar grupos de trabalho, formar uma companhia ampla e sólida para levar por diante o trabalho que nos está destinado”. A exaltação na voz é evidente. “2 de Maio de 1974. Por motivo de rouquidão do actor não se realizou o espectáculo.” Os momentos finais são tudo menos exaltantes. O TEP vive as dificuldades de sempre, agravadas por um pavoroso incêndio que destruiu a sua casa. A cultura continua a não fazer parte das prioridades governativas e os apoios tardam em concretizar-se. Cai o pano, fecha-se mais um ciclo e há um nó que nos tapa a garganta. Sara Barros Leitão cumpre o importante papel de chamar a atenção para as realidades que, continuamente, asfixiam a cultura. Quem a ouve?

[Foto: TNSJ | https://www.tnsj.pt/]

Sem comentários:

Enviar um comentário