CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #72
Escola de Artes e Ofícios
120 Minutos | Maiores de 14 anos
01 Jun 2023 | qui | 21:30
Na viragem da 7ª temporada do Shortcutz Ovar, a sessão de ontem à noite, com casa cheia, teve numa aparente contradição o elo comum aos três filmes a concurso. Basta atentar nos títulos e olhar para os nomes dos respectivos realizadores para se perceber que todos eles filmaram fora do seu “ambiente natural”. Daniel Soares nasceu na Alemanha, vive no nosso País e filmou na Suiça. Vasco Alexandre nasceu em Lisboa, está presentemente na Dinamarca e filmou em Edimburgo. Aurélie Oliveira Pernet nasceu em Besançon, vive em Zurique e filmou em Portugal. Cruzar os olhares de três cineastas da diáspora e vê-los pensar o nosso mundo e os seus paradoxos, tal foi o propósito dos programadores, daí resultando uma sessão que funcionou em “loop”, com ponto de partida e chegada em realidades tão presentes como a exploração laboral ou a falta de apoio aos cuidadores informais, e uma distopia de permeio a pensar questões como a interrupção voluntária da gravidez ou a pressão que o Estado exerce sobre os cidadãos. Uma sessão centrada na figura da mulher, com a sua força e os seus ideais, as suas dúvidas, a sua persistência e coragem.
A abrir a noite, Daniel Soares trouxe-nos “Please Make It Work”, a sua segunda obra depois de “O Que Resta”, apresentado neste mesmo local na anterior temporada do Shortcutz Ovar. Pensado e realizado em escassos dez dias, no âmbito de uma residência artística organizada pelo Festival de Cinema de Locarno, o filme dá a ver uma parcela do dia de Cláudia, trabalhadora de limpezas de alojamentos locais nos Alpes Suiços, na sua relação com um patrão exigente e arrogante e com a futilidade dos interesses de uma filha pré-adolescente. Filmado num plano-sequência único, os movimentos de câmara reduzidos a um acompanhamento continuado da acção, “Please Make it Work” é um convite à reflexão sobre aquilo que somos ou para onde caminhamos. Distante das personagens, sentindo mais do que vendo, o espectador não pode deixar de perceber o abismo que se oferece numa janela aberta quando todas as portas se fecham. Esta dimensão de tragédia, que a paisagem alpina amplia, tem no olhar irónico do realizador o seu contraponto, dizendo-nos que mais vale rir que chorar.
Também Vasco Alexandre nos ofereceu, com “Ten With a Flag”, uma segunda obra, ele que repetiu a sua presença no Shortcutz Ovar, depois de aqui ter mostrado na temporada anterior o belíssimo “Yard Kings”. Parábola sobre um futuro que pode ser já hoje, o filme é baseado num conto de Joseph Paul Haines e explora a relação dos cidadãos com o Estado, numa sociedade estruturada num sistema de rankings. A gestão de expectativas num futuro que não somos livres de controlar é o aspecto mais perturbador de um filme que encerra um vasto conjunto de leituras. Nos quadros que, das paredes, parecem observar tudo em volta ou na música infantil que pontua os momentos de tensão, a sensação é de um profundo desconforto face a uma sociedade desumanizada, permanentemente vigiada, cuja lógica assenta no medo e nega o direito de opção, embora afirme o seu contrário. Há um plano frontal da habitação que mostra o que se passa por detrás das enormes vidraças e o sentimento de solidão não poderia ser maior, como se de um quadro de Hopper se tratasse. Entre um olhar tenso e um sorriso forçado, que “bandeiras” estamos dispostos a abraçar?
Depois de uma distopia, a realidade mais crua encerraria a sessão, exposta no ecrã pela mão de Aurélie Oliveira Pernet. Inspirada nas histórias da família da autora, “As Sacrificadas” traz-nos o drama dos incêndios florestais que varrem o país de norte a sul, embora o drama aqui seja outro e bem mais presente, afectando as vidas de cerca de oitocentos mil portugueses. É assim que encontramos Otília, uma mulher a entrar na meia idade que reparte o seu quotidiano entre os trabalhos de limpeza nas Piscinas Municipais e o cuidar da mãe, com o seu rol de queixas e cismas. Um quotidiano sufocante, marcado pela solidão e pela desesperança, ao qual não vê como escapar. Prova de maturidade de uma realizadora que tem aqui o seu segundo filme, “As Sacrificadas” coloca o dedo na ferida ao falar dos cuidadores informais, mulheres e homens insubstituíveis mas que permanecem na invisibilidade sem terem quem cuide deles. Atento, sensível e generoso, o olhar de Aurélie Oliveira Pernet é cirúrgico, colocando-se do lado do cuidador e chamando a atenção para as injustiças que o acometem. Com uma superior interpretação de Tânia Alves no papel de Otília, o filme desperta a atenção do espectador para um problema ao qual o Estado tarda em dar solução.
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