TEATRO: “United Colors Of”
Ideia original | Daniela Amaral Cardoso, João Amorim, João Garcia Neto
Encenação | Ricardo Neves-Neves, Joana Magalhães, João Amorim, Daniela Amaral Cardoso
Dramaturgia original | Guilherme Gomes, Raquel S., João Amorim
Realização | João Garcia Neto
Cenografia e figurinos | Bárbara Rosário
Interpretação | Daniela Amaral Cardoso, João Amorim
Produção | Companhia Bandevelugo
80 Minutos | Maiores de 14
Museu Escolar Oliveira Lopes
01 Abr 2023 | sab | 16:00
Com os olhos da imaginação abrimos o espaço em volta e transformamos a pequena sala da Cantina do Museu Escolar Oliveira Lopes (MEOL) numa vasta galeria do Hermitage ou do Rijksmuseum. Com todo o cuidado, dois funcionários contemplam um quadro que se preparam para devolver às paredes. Não coincidem nas apreciações que fazem, esgrimem perspectivas, acentuam pormenores. “- Se tivéssemos o título da obra, ajudava”, diz um, ao que o outro contrapõe: “Não, os títulos só estragam, abstraem.” Rodam o quadro e a lógica inverte-se. Começa aqui uma viagem pela arte naquilo que tem de inquietação, de sublimação, de transgressão. Questiona-se o seu papel formativo, o significado que confere à vida, o confronto entre o real e o virtual, a relação entre passado e futuro. Seguindo o esquema de uma visita guiada, “United Colors Of” convida o espectador a “seguir o amarelo”, a atravessar salas e corredores, propondo-lhe uma reflexão sobre a sua própria concepção da arte como um todo e, em particular, sobre o objecto artístico. O exercício representa uma mão cheia de desafios. O resultado - acreditem! - é avassalador.
A peça, como disse, tem como ponto de partida uma performance. Chama-se “Abstração de Herbert MacCartney” e faz da arte um imenso mar por onde voga a imaginação de cada um. Nem Tróia, nem Ítaca. O importante é a viagem, o que dela recolhemos, o que com ela aprendemos. Para muitos dos espectadores com quem vi a peça, alunos de uma turma do secundário da Monsenhor Miguel de Oliveira, ali ao lado, a “viagem” mal começou. Se tiverem sabido aproveitar a riqueza da performance e o significado da sua mensagem, guardarão para sempre uma frase impactantes: “Só saberemos, se tivermos vivido para o saber”. Novo quadro, nova performance. Vivendo apenas de sons do quotidiano, “Duas pessoas falam num café” convoca o universo das relações interpessoais, a imponderabilidade de um simples encontro, a vulnerabilidade das ligações, a forma como se fortalecem ou se quebram. Mas deixemos por momentos o espaço do MEOL. Chamaríamos arte a uma conversa banal, que escutamos inadvertidamente enquanto tomamos um café no Tílias? Ser ou não ser, eis a questão.
Subimos as escadas de serviço até ao primeiro andar. Subimos na escala do tempo ao encontro do futuro. Adensa-se a máscara que há em cada um de nós. Camadas sobre camadas sobre camadas são fruto da alienação que aceitamos sem reservas, dessa transformação que nos “eleva” à condição de avatares. Densamente “retocados”, abraçamos o Metaverso, esse lugar onde o nosso gato não morre, onde conseguimos criar relações mais profundas, onde (também) é possível fazer sexo. “É mesmo incrível!!!”. A indiferença toma conta de nós a ponto de deixarmos de ver o quão reaccionária pode ser uma frase do género: “Ainda ficamos é racistas com tanta manifestação antirracista”… (Rui Rio). “Viagem no Tempo Mental” fecha a viagem. O “ainda me lembro (de cozinhar uma sopa, de apanhar amoras, de Portugal ganhar o Europeu…)” de um dos actores, diz-nos que o espaço temporal desta viagem é curto, que este futuro onde o avanço da tecnologia levará ao desconhecimento das coisas mais básicas é já aqui. Por agora, o futuro está parado!
“O futuro está parado!”. A frase é como um murro no estômago e é com ela que o pano desce sobre “United Colors Of”. Um turbilhão de emoções toma conta de mim. Na minha cabeça baila o contraste entre a exaltação de Putin e dos seus acólitos e o clima de terror que se espalha por toda a Ucrânia enquanto, em fundo, se escuta o hino nacional de Portugal (depois disto, haverá quem consiga entoar “contra os canhões…”?). Ainda estou a ver o lápis azul da censura que me acena sob a forma de um desentupidor quando chego a casa e me sento para escrever. Mas escrever o quê? Pesquiso “Bandevelugo” e percebo que foi um deus pré-romano e é, também, uma estrutura teatral com sede em Oliveira de Azeméis. Um colectivo fundado em 2021 - “um tempo estranho que nos inibiu de agir” -, que arregaçou as mangas e deu asas à criatividade e à imaginação. “Quase clandestinos”, foram em busca “das matrizes pedagógicas que sedimentaram uma das mais eficazes e duradouras ditaduras da Europa.” Fizeram-no com arte e com génio, oferecendo-nos uma peça plena de actualidade e profundamente perturbadora. Bandevelugo é “United Colors Of” e “United Colors Of” somos nós. A desconfiança é a cola que nos une.
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