TEATRO: “A Maior Flor do Mundo e As Pequenas Memórias”,
de José Saramago
Dramaturgia e encenação | Frédéric da Cruz P.
Música original (com interpretação ao vivo) | Surma
Cenografia e figurinos | Carla Freire
Interpretação | Matilde Cruz
Produção | Leirena Teatro - Companhia de Teatro de Leiria
50 Minutos | Maiores de 3 anos
Auditório da Junta de Freguesia de Maceda
08 Abr 2023 | sab | 16:00
“E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?”
José Saramago (in, “A Maior Flor do Mundo”)
“As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças, sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas. Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena. Se eu tivesse aquelas qualidades todas, poderia contar, com pormenores, uma linda história que um dia inventei.” Bebo estas palavras em êxtase à medida que, no palco, um pedaço de cartão se desdobra para dele se erguer, literalmente, uma aldeia com o seu casario, as andorinhas que fazem ninhos nos beirais, as oliveiras que crescem com os seus ramos retorcidos, as osgas que se espreguiçam no branco da cal e a música que, festiva, atravessa o ar vinda do coreto. A aldeia é a Azinhaga, terra natal do escritor José Saramago que aí nasceu no dia 16 de Novembro de 1922 e foram as suas “pequenas memórias” que, a par da “maior flor do mundo”, o Leirena Teatro - Companhia de Teatro de Leiria quis trazer ao Auditório da Junta de Freguesia de Maceda na tarde do passado sábado.
Explorar o mundo de José Saramago pode não ser tão complicado quanto se possa julgar. Haja, para tal, engenho e arte. E isso é coisa que parece não faltar a este colectivo leiriense, já que encontrou na infância do escritor a semente de flores maiores e quis espalhá-la a um público onde se contavam muitas crianças. Frédéric da Cruz P. soube seleccionar excertos dos livros mencionados, explorando a intertextualidade tão rica na obra do escritor e, conjugando-os na perfeição, estabelecer um mundo de encanto e fantasia a partir do real. Foi este mundo que, na voz e no gesto, uma talentosa e expressiva Matilde Cruz ousou abrir, revelando possuir tudo aquilo que o escritor dizia não ter: “Um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e muito explicada, uma paciência muito grande”. Com a música de Surma tocada ao vivo a ampliar a magia e um dispositivo cénico extraordinariamente engenhoso do qual se ergueram ruas largas e estreitas, a escola e a igreja, florestas e colinas - e até uma espiral do sonho -, o público deixou-se embalar por uma história rica de significados e com uma poderosa mensagem.
Aceite o convite de Matilde Cruz, mergulhamos nas pequenas memórias de José Saramago. Pose militar, ímpeto na voz, a actriz compõe um tio Francisco Dinis irrepreensível no papel de guarda na Herdade do Mouchão, erguendo-o ante os nossos sorrisos com a sua “espingarda caçadeira de dois canos, barrete verde, camisa branca de colarinho sempre abotoado, abrasasse o calor ou enregelasse o frio, cinta encarnada, sapatos de salto de prateleira, jaqueta curta - e, evidentemente, cavalo.” Depois dá-nos a ouvir os meninos que, na escola, jogam à bola, ou as meninas que trocam segredos entre si e é através dela que conhecemos a “pezuda” e a razão pelo qual o menino decidiu tornar-se invisível. Vemos como os ramos de uma oliveira podem moldar-se de forma tão original e ficamos a saber que aos pés da aldeia, corre o Almonda e, mais adiante, por entre freixos e salgueiros, se espraia o Tejo. São estes rios que alagam a aldeia quando chove no Inverno, isto à medida que as nuvens se vão avolumando nas mãos da actriz, num prenúncio de tempestade.
As peripécias sucedem-se e os horizontes do menino tornam-se mais vastos. Num abrir e fechar de olhos “chegou ao limite das terras até onde se aventurara sozinho. Dali para diante começava o planeta Marte. (…) Vou ou não vou? E foi.” Mas não viu marcianos, nem dragões mecânicos, nem tiranossauros. Só “uma charneca rasa, de mato ralo e seco, e no meio dela uma inóspita colina redonda como uma tigela voltada.” Sobe o menino a encosta, mas quando chegou lá acima viu apenas uma flor. “Mas tão caída, tão murcha…” E como este menino era especial, achou que tinha de salvar a flor. Não vou desvendar o final desta história muito bela. Fico-me apenas com as derradeiras palavras de José Saramago: “Este era o conto que eu queria contar. Tenho muita pena de não saber escrever histórias para crianças. Mas ao menos ficaram sabendo como a história seria, e poderão contá-la doutra maneira, com palavras mais simples do que as minhas, e talvez mais tarde venham a saber escrever histórias para as crianças… Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?…”
Sem comentários:
Enviar um comentário